O que junta Fernando Alves, Francisco Louçã e Rita Taborda Duarte no podcast Um pouco mais de azul?
Rita Taborda Duarte sugere dois livros que são dois modos de combater estes tempos asmáticos: "Amanhã", de Ana Biscaia, e "Gaza Está em Toda a Parte", de Alexandra Lucas Coelho.
Francisco Louçã fala do problema dos três corpos no mistério astronómico e matemático, que tem aliás sido apresentado como uma política clarificadora, e que significa o PS apoiar o PSD.
Fernando Alves detém-se no discurso de apresentação de candidatura de Gouveia e Melo, diante de um friso de representantes do rebotalho.
«Um Pouco Mais de Azul é um podcast independente da rede PÚBLICO. Está disponível às quintas-feiras, quinzenalmente, em todas as aplicações para escuta de podcasts — como a Apple Podcasts ou o Spotify — e na área de podcasts do site do PÚBLICO.
Em baixo, pode ler três excertos do episódio desta semana.
Apneia porquanto o ar esteja inquinado
Amanhã, de Ana Biscaia, e Gaza Está em Toda a Parte, de Alexandra Lucas Coelho
Rita Taborda Duarte
Que escolha? Deixarmo-nos intoxicar por este ar contaminado? Ou sufocarmos pela recusa em respirá-lo? Vivem-se tempos asmáticos. A palavra que elegemos para este novo episódio de «Um pouco mais de azul» é apneia: metáfora certeira, para esta sobrevivência aos solavancos, em que se alterna entre sorver um ar viciado e tóxico, quase irrespirável, e suster a respiração. Tempos pouco inspirados, enfim, pelo que não há como não ser pessimista. Os sentimentos mais sombrios e desumanos, dantes inconfessados, porque inconfessáveis, vão-se tornando posição política, exibida com orgulho.
Suspendo a apneia e respiro de alívio fundo, quando, neste tempo armadilhado, alguns livros excepcionais surgem, assim, como um balão de oxigénio.
Como é de uso, no passado 1 de Junho, foi Dia da Criança: os parques encheram-se de festejo a que compareceram risos e gargalhadas atrás de bibes e correrias da gaiatada. Foi o Dia da Criança, sim. Mas, bem nós sabemos que só de algumas crianças. E definitivamente não as da Palestina; não as da faixa de Gaza. Ana Biscaia, autora, ilustradora, foi a responsável pela beleza triste de um cartaz que encabeça um manifesto de um conjunto de escritores, ilustradores, artistas, bibliotecários, músicos, professores, editores que trabalham com e para as crianças e que não puderam, em consciência, passar em claro este dia.
Assim, 135 nomes subscreveram o seguinte texto, necessariamente curto: «Criamos e trabalhamos para a infância. Ante o massacre de milhares de crianças e outros Palestinianos em Gaza, não seremos cúmplices pelo silêncio. Denunciamos e repudiamos o genocídio. Um mundo de paz é possível. É esse o mundo que desejamos.» Ana Biscaia é a responsável pelo desenho que acompanha estas palavras. Seu também o belíssimo volume Amanhã, testemunho em forma de livro-caderno, publicado na colecção de livros artísticos Oleandras. Aí, explica a autora: procurou um modo «experimental de contar uma história particular, com a sua vida dentro.» No livro, vai-se perseguindo a descoberta de uma identidade ligada à memória, ao pensamento, à expressão de um eu, enquanto presença; um livro que se torna uma pegada na superfície do mundo e que deixa marca, também, naquele que o lê: prova de existência, testemunho, como forma de resistir ao anonimato, de criar um concreto espaço de pertença. Este livro-volume – caderno impresso –, de Ana Biscaia, chama-se Amanhã. É muito significativo dar o nome «amanhã» a um registo diarístico e memorialista, em que se sucedem sentidos e sentimentos, através de dias datados, como um patchwork feito de pedaços de tempo.
Entre 21 de Março e 7 de Dezembro de 2023, exploram-se imagens, desenhos, momentos, relações familiares, íntimas e pessoais, expressos num caderno real aqui reproduzido, e em que se recupera linhas de um passado, projectadas para um futuro, um amanhã. O leitor acede, então, ao efectivo – e afectivo – caderno de Ana Biscaia: e é essa verdadeira identidade que se testemunha e que marca uma presença concreta no mundo do leitor. E, no meio do caderno/livro de Ana Biscaia, no meio deste Amanhã, escrito e desenhado, dia a dia, entre a intimidade cerzida, comove descobrir mensagens, apontamentos, também desenhos, com os olhos postos em Gaza.
Entre os registos que entretecem diversos fios do pensamento, lê-se este de 28 de Outubro: «GAZA. Amanhã faço 45 anos. O corpo ressente-se». No final da mesma página, chega-se a 7 de Dezembro: «6 600 crianças Palestinas mortas desde o dia 7 de Outubro de 2023, pelo exército israelita. No registo anterior, a data é a de 7 de Novembro: uma referência a «Adania Shibli. Um murro no estômago». E, mesmo no final do registo, uma frase que rebenta no livro como o seu verdadeiro cerne, o seu sentido mais íntimo: «O mundo não é uma abstracção». Livros como estes têm este poder: obrigam a não sentir o real como coisa distante e abstracta; a literatura e a arte com o poder de nos reaproximar do mundo. A palavra «amanhã» nunca terá tido, como neste livro, tanto passado no seu futuro. E é também isto que devemos exigir ao mundo: um futuro cheio de passado, com a consciência visível da memória, das suas marcas.
Os livros, bem o sabemos, sempre foram a nossa melhor testemunha; não se acreditando no seu poder, não haveria tamanha sanha em proibi-los, atacá-los, antes, como hoje. Aliás este ataque cerrado, continuado, às ciências humanas perpetua-se por uma insinuada certeza de que elas enraízam identidade e humanidade no mundo, na civilização. O desinvestimento, consciente, na cultura, nas ciências humanas, no saber artístico, na História na Filosofia, em todos os modos subtis de nos dizermos e expressarmos, criando identidades com lastro e memória, terá sido um facilitador destes tempos, em que a maldade e o egoísmo se vão, ufanamente e sem escrúpulos, tornando bandeiras políticas.
Convoco também, assim, para que não se esqueça o livro Gaza está em toda a parte, de Alexandra Lucas Coelho, composto por uma série de crónicas, artigos e testemunhos sobre a situação de Gaza, após 7 de Outubro, com um texto prefácio, o único, antes do rapto dos reféns pelo Hamas, e que bem poderia, como Alexandra refere, ser exactamente sobre o momento que o antecedeu.
Gaza, neste livro, tal como o mundo, de Ana Biscaia, não é uma abstracção; não é uma entidade vaga e imaterial sobre que se debitam generalidades e opiniões; Gaza, aqui, tem nomes próprios, gente concreta, crianças reais a viver lá dentro; a morrer lá dentro. Este não é só – e já seria muito – um livro de testemunho jornalístico, também pessoal; é, até do ponto de vista editorial, um livro de resistência, impondo-se como presença declarada que toma partido: não deixa que o futuro prossiga, sem que a memória do presente e do passado lhes condicione o passo. Numa das centenas de fotografias, a cores, que o livro contém, vê-se um mural grafitado cobrindo o muro de cimento com que Israel aprisionou a cidade de Belém. O mural abre no muro uma brecha pintada: paisagem-pintura que abre para a cidade-futuro do lado de lá, barrada pelo muro. Ao lado um dito grafittado: «Apartheid is not Kosher».
Se para nada mais servirem os livros serão, pelo menos, testemunhas que perduram no tempo, para que todos sejamos testemunhos conscientes, e não passemos, como no poema de Eugénio de Andrade, «pelas coisas sem as ver,/gastos como animais envelhecidos».
Um mar de almirantes
Fernando Alves
Quando a Rita Taborda Duarte propôs como ponto de partida deste episódio de Um Pouco Mais de Azul a palavra apneia fui tentado a afivelar a máscara com que durmo e a esgalhar uma prosa de cortar a respiração. Uma alternativa se insinuou: e que tal um texto deliberadamente soporífero, escrito e lido sem máscara, um texto de tal modo narcótico que, ao lê-lo, neste aprazível jardim, eu próprio pudesse sucumbir ao sono, não apenas devido às temperaturas altas? A correr bem, todos cairíamos em tal sopor, é um suponhamos… E não fantasio apenas um sono pesado, antes o estado mais comatoso do sono, sendo esse sono, tal como no poema de Álvaro de Campos, “mais de dentro, mais de cima”, “sono da soma de todas as desilusões” (…) “meu Deus, tanto sono!”.
Pensei nisso quando um almirante vestido de paisano a imitar o porte de almirante, tomou o palco como se se aventurasse no portaló e abdicou do mergulho em apneia, o que seria apropriado na justa medida em que tinha a dois passos a água mítica dos Gamas, ainda que desaconselhável por susceptível de tomar como boa, e nas águas do mesmo rio, antiga encenação natatória do actual mandatário do cargo a que aspira, com as devidas diferenças sublinhadas.
Tal mergulho, se não resistisse à tentação, ter-lhe-ia permitido capturar a beleza do mundo subaquático ou alcançar maior profundidade de raciocínio. Mas optou pela utilização de mais sofisticados aparatos tecnológicos de respiração em ambiente saturado. E assim, tendo como astrolábio o teleponto e como recurso estilístico uma austeridade quase franciscana, uma altivez estóica, o almirante desistiu de um sermão aos peixes, optando por uma declamação neutra.
Não se pode dizer que tenha metido água, isso seria o menos, dado o contexto; mas se o almirante tivesse ousado, naquele tom, naquela experiência imersiva na mais funda inexpressividade, uma passagem da Ode Marítima, o navio encalharia, com os cavalheiros do rebotalho dormitando na fila da frente. Felizmente, a sala estava um tranquilo mar de almirantes.
As palmas batidas a compasso de reumatismo mantinham à flor do teleponto os peixes voadores da apneia do sono.
Centremo-nos, entretanto, (ou como quase todos dizem agora, foquemo-nos) nessa arte da respiração suspensa. É esse o étimo da palavra: “sem respirar”.
Um certo sir Alister Hardy, cientista de Harvard que, faz agora cem anos, andava em missão de recolha de plâncton numa expedição à Antártica, encontrou evidências arqueológicas que datam de mais de cinco mil anos antes de Cristo, as quais o levaram a sustentar a existência daquilo que foi designado como Hipótese do Macaco Aquático. O mergulho em apneia tem muita água desbravada e pode almejar no futuro uma sumptuosa profundidade oceânica. Mas não é aconselhável em salas fechadas. E há que marcar diferenças, no estilo e na substância.
Terminada a sessão da Gare Marítima, a primeira fila, a do peixe nem sequer graúdo do rebotalho, pouco espanejou as barbatanas. Alguns pareciam dormitar.
“As lentas nuvens fazem sono”, diria o outro.
Ora. E depois? A nuvem, poderia explicar, terá explicado o grande estratega, ensaiador do teleponto, é o sítio para onde vão os discursos, os bons e os maus.
Foi este discurso entendido pelos tubarões e pelos jaquizinhos e poderia ter sido escrito por cada um dos representantes do rebotalho ali presentes. Terá faltado um melhor desempenho da sinalética elementar. Da próxima, quando houver pausa no teleplâncton, batam palmas. Sem grande euforia ou agitação, acautelando a apneia. Em cada plateia um mar de almirantes.
A armadilha dos três corpos
Francisco Louçã
Quem se lembrou do “problema dos três corpos”, certamente a partir da série chinesa e da Netflix que ficcionaram a questão suscitada por Kepler e depois Newton, para sugerir uma metáfora orientadora para a política portuguesa, fez um duplo mau serviço ao país.
Primeiro, criou confusão: se a transferência desse problema astronómico para o domínio da política fizesse sentido, então a conclusão seria pesada e mesmo contrária ao que nos sugerem, dado que ele é matematicamente irresolúvel para a maior parte das condições iniciais e conduz a trajectórias caóticas e portanto imprevisíveis (bastava ter visto as séries para notar este efeito). A ideia de que os três corpos se equilibram e dançam juntos é, no mais das vezes, uma fantasia tão amável quanto irrealizável. É mais fácil os três corpos conduzirem a uma incerteza radical e a caminhos surpreendentes do que a uma órbita estável. A “teoria” só distrai e não oferece nenhuma resposta: não tem solução e não é uma solução.
Em segundo lugar, a sugestão que decorre explicitamente da teoria dos “três corpos”, que seriam o PSD, o PS e o Chega, é que o PS apoie o governo do PSD em nome de afastar a extrema-direita do lugar da máxima influência política. Bem sei que a teoria foi evocada pelo efeito estético da metáfora e, sobretudo, para sugerir que o PSD apoiasse o PS no caso de este ser o partido mais votado ou, na versão mais benigna, que um virtuoso bloco central afastasse o Chega. A questão é que a teoria se aplica em todos os formatos e, sendo o PSD o partido mais votado, aprisiona os seus autores numa consequência inconsequente que oferece à direita o controlo da agenda política e, subordinado o PS, aliás sem grande dificuldade, permite a Montenegro um jogo de balancé entre os outros dois corpos. A teoria está a ser aplicada, é preciso constatá-lo, e quem agora manda é o PSD, certamente o primeiro a festejar a vantagem que os “três corpos” lhe oferecem. Pela mesma razão, pode gabar-se de ter estendido a casca de banana da revisão constitucional e de PS e Livre nela terem patinado, o primeiro a oferecer-lhe o orçamento a troco de nada e o segundo a propor-se para negociar tal revisão com a direita, uma pretensão desprezada olimpicamente pelos criadores da manobra de distracção.
Há ainda uma outra consequência da teoria que merece atenção. É que, se for aplicada na forma actual do tal bloco central, ou seja, da subordinação do PS ao PSD, a “teoria” conduz exactamente ao efeito contrário ao anunciado e é o melhor favor que esses partidos podem fazer ao Chega. É o que lhe permite estar e não estar na equação, comprometer e denunciar o “sistema” dos dois partidos previamente alternantes, fazer-se de responsável aqui e acolá e esperar a sua vez. Ora aí está: se é um sistema caótico que regula o país e que é proposto como a sua melhor solução, então o partido que pretende o caos bem pode esperar pela sua hora, que o “sistema” está a trabalhar para ele.