Portugueses juntam-se a marcha pacífica até Gaza: “Queremos uma fronteira aberta à ajuda humanitária”

Dois mil cidadãos de mais de 40 países vão participar, a 13 de junho, numa marcha global com destino à fronteira de Rafah, no sul do Enclave.

É um movimento civil internacional que se organizou como reação à paralisia diplomática que se verifica perante colapso humanitário na Faixa de Gaza.

Sem filiações partidárias ou religiosas, os participantes estão unidos por um objetivo: sensibilizar para a importância de romper o bloqueio israelita e permitir a entrada de ajuda humanitária em Gaza.

A comitiva luso-galega, com cerca de 30 participantes confirmados, parte a 12 de junho para se reunir com outras delegações no Cairo. No dia seguinte, o grupo segue de autocarro até Al-Arich, cidade do Sinai egípcio. A partir desse ponto, inicam uma caminhada de 47 quilómetros até ao posto fronteiriço de Rafah, indicou à Renascença a porta-voz do grupo luso-galego, Ana Rita Tereso.

"Nós vamos de avião, não conseguimos levar aqui camiões de ajuda humanitária", conta. O objetivo da marcha é, sobretudo, chamar à atenção da comunidade internacional.

47 quilómetros de marcha pela Palestina

Os participantes calculam cumprir três dias em marcha, maioritariamente de madrugada e à noite. sendo certo que, pelo caminho, vão contar com muitas adversidades - desde as altas temperaturas do deserto aos “checkpoints”.

“Vamos começar muito cedo e fazer uma pausa longa durante o almoço. Depois, vamos começar outra vez a caminhar no final do dia, de propósito, para que não seja demasiado difícil”, explica Ana Rita Tereso, que é natural de Lisboa e professora de Português para Estrangeiros.

Ao longo do percurso, além de contarem com a ajuda de vários médicos e enfermeiros de diferentes países que vão integrar a marcha, vão ter ainda o apoio de duas ambulâncias, “asseguradas por uma equipa local”.

“O que muitas pessoas não sabem e talvez seja importante partilhar é que existem vários 'checkpoints' até chegar à fronteira e esta zona, que se chama Sinai, no Egipto, é uma zona extremamente militarizada."

“Quero que as pessoas percebam os riscos: nós podemos chegar ao primeiro ‘checkpoint’ e não conseguir passar”, alerta, salientando que não vão “entrar em discussão com a autoridade" nem "tentar passar à força, de todo”, sublinha Ana Rita Tereso.

A organização preparou planos de contingência, inclusivamente para a possibilidade de o grupo ser barrado logo em Al-Arich,. Esses planos não são revelados por questões de segurança, mas os manifestantes garantem que se trata de uma marcha pacífica e que a seleção dos participantes foi rigorosa.

De acordo com Ana Rita, as pessoas da comitiva têm de subscrever os princípios de não-violência, aceitando "fazer uma marcha pacífica até à fronteira" para evitar que a causa seja comprometida.

“A nossa ideia é, realmente, compactuar com as autoridades egípcias e fazer o que eles nos disserem”, afirma, assegurando que as entidades oficiais do Cairo estão a par da marcha.

Entre as mais de 40 delegações de vários países que vão integrar esta marcha, são esperadas mais de duas mil pessoas e, se tudo correr como previsto, esperam chegar à fronteira no dia 15 de junho, onde deverão acampar até 19.

A porta-voz da delegação portuguesa destaca que há participantes “de todo o tipo de backgrounds e profissões” e que se trata de um movimento “apolítico, pacífico”, que recebe “todo o tipo de pessoas, todas as religiões, todos os partidos”.

“Queremos uma fronteira aberta à ajuda humanitária”

A iniciativa tem três objetivos: ajudar a abrir a fronteira em Rafah, “para a ajuda humanitária poder entrar em Gaza”; apelar a um “cessar fogo definitivo”; e a terceira, que a porta-voz considera uma questão “muito complexa”, é exigir o “fim da ocupação” por Israel dos territórios palestinianos - não só de Gaza, mas também da Cisjordânia.

“Estas pessoas continuam a morrer à fome, continuam a morrer à sede e o que nós queremos é uma fronteira aberta, pelo menos, à ajuda humanitária, para que entre comida, água e bens essenciais, que são absolutamente necessários para que não vejamos 14.000 bebés a morrer em três dias”, justifica Ana Rita Tereso.

ONU receia morte de 14 mil bebés em Gaza nas próximas 48 horas

O povo de Gaza está a passar em corredores como se fossem animais. Estão a ser mortos quando não se comportam”

Funcionários das Nações Unidas na Faixa de Gaza alertam que o fluxo de ajuda essencial caiu mais de dois terços desde que os militares israelitas intensificaram a sua campanha em Rafah e tomaram a passagem fronteiriça. Desde 7 de maio, caiu 67% a entrada de bens para dar resposta às necessidades em Gaza.

Ana Rita Tereso defende que a situação em Gaza é “desumana” e lembra que a única ajuda humanitária que está a chegar aos palestinianos é controlada por Israel.

Israel impôs um bloqueio total à Faixa de Gaza a 2 de março e retomou a sua ofensiva militar duas semanas mais tarde, pondo fim a um cessar-fogo de dois meses com o Hamas. Após um bloqueio de quase três meses, no fim de maio, Israel anunciou que iria permitir a entrada de uma quantidade limitada de ajuda humanitária, para evitar uma “crise de fome”.

“O povo de Gaza, neste momento, está a passar em corredores como se fossem animais. Estão a ser mortos quando não se comportam, quando temos pessoas literalmente a morrer à fome”, defende a porta-voz.

O agravamento do cerco a Gaza tem provocado incidentes trágicos junto dos centros de distribuição de alimentos. Nas últimas semanas, têm-se verificado relatos de vários incidentes mortais que terão ocorrido nas imediações destes centros da Fundação Humanitária de Gaza (GHF), que é apoiada pelos Estados Unidos e por Israel.

Segundo as autoridades locais dirigidas pelo Hamas, nos últimos dias, as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) terão disparado sobre vários palestinianos que tentavam aceder às instalações humanitárias, acabando por fazer várias vítimas mortais, perto dos três centros de ajuda no sul de Gaza. Os mais graves terão ocorrido no domingo e na terça-feira, em Rafah.

Pelo menos 24 palestinianos terão sido mortos por disparos israelitas junto a um ponto de ajuda em Gaza

No domingo, 31 palestinianos terão sido mortos por disparos das IDF. Segundo a ONG Médicos Sem Fronteiras, as vítimas chegaram ao hospital Nasser, de Khan Younis, no domingo de manhã.

Já o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), relatou que, no mesmo dia, 179 adultos e crianças deram entrada no hospital da organização em Rafah. As equipas médicas declararam 21 pessoas mortas à chegada.

As IDF têm recusado estas acusações, classificando os relatos como "falsos". Israel argumenta que um inquérito inicial concluiu que as suas forças "não dispararam contra civis quando estes se encontravam perto ou dentro do local de distribuição de ajuda humanitária".


O mundo todo está a ver isto tudo a acontecer e não estamos a conseguir fazer nada, mas parte muito também da inação dos nossos líderes mundiais”

Na terça-feira, o Ministério da Saúde de Gaza disse que as forças israelitas tinham novamente disparado sobre quem tentava aceder à ajuda humanitária, acabando por matar pelo menos 27 pessoas perto de um centro de distribuição.

As IDF, numa publicação no X, afirmam que "as tropas efetuaram disparos de aviso e, depois de os suspeitos não terem recuado, foram efetuados disparos adicionais contra suspeitos individuais que avançaram em direção às tropas". Acrescentam que os "tiros de aviso" foram disparados "aproximadamente a meio quilómetro" do local onde decorria a distribuição de ajuda humanitária.

O Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) confirmou a morte de 27 pessoas, na terça-feira, nos incidentes junto do centro de distribuição de Rafah.

"Ao início desta manhã, o hospital de campanha da Cruz Vermelha, com 60 camas, em Rafah (sul), recebeu 184 vítimas. Dezanove deles foram declarados mortos à chegada, e outros oito sucumbiram aos ferimentos pouco depois. A maioria dos doentes foi baleada", descreveu o CICV em comunicado.

Na passada quarta-feira, a GHF comunicou que iria suspender a distribuição de ajuda e que estava a analisar com os militares israelitas medidas para melhorar a segurança dos civis, incluindo alterações na gestão do fluxo de pessoas.

“O mundo todo está a ver isto tudo a acontecer e não estamos a conseguir fazer nada em relação a isso", lamenta a porta-voz da comitiva luso-galega que vai participar na marcha, "mas parte muito também da inação dos nossos líderes mundiais”.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, pediu uma investigação “imediata” e “independente” sobre os relatos de palestinianos mortos durante a recolha de comida.

“Estou consternado com as notícias sobre palestinianos mortos e feridos ontem (domingo) enquanto procuravam ajuda em Gaza. É inaceitável que os palestinianos arrisquem as suas vidas para obter comida”, afirmou António Guterres numa publicação no X, defendendo que a investigação é necessária para que “os responsáveis sejam responsabilizados”.

O secretário-geral das Nações Unidas lembrou que “Israel tem obrigações claras, nos termos do Direito Internacional Humanitário, no que diz respeito a aceitar e facilitar a entrega de ajuda humanitária”.

O antigo primeiro-ministro português deixou ainda o apelo para que seja “imediatamente restabelecida a entrada, sem entraves, de assistência em grande escala para satisfazer as enormes necessidades em Gaza”.

O que tem a marcha em comum com Greta Thunberg e Liam Cunningham de Game of Thrones?

A delegação portuguesa reforça que a Global March to Gaza não transporta ajuda humanitária nem pretende romper fisicamente o bloqueio, mas está em contacto com duas outras iniciativas de grupos ativistas que tentam fazer chegar bens — a Freedom Flotilla Coalition (FFC, Coligação da Flotilha da Liberdade) e o Somoud Convoy.

O veleiro Madleen, operado pelo grupo Coligação Flotilha da Liberdade, zarpou de Catânia, na Sícilia, a 1 de junho e vai tentar, pela segunda vez, fazer chegar ajuda ao enclave palestiniano por mar. Entre os 12 voluntários a bordo do veleiro está a ativista climática Greta Thunberg, o ator Liam Cunningham (Davos Seaworth de “A Guerra dos Tronos”) e a eurodeputada francesa de ascendência palestiniana Rima Hassan.

"Estamos em contacto com eles", explica Ana Rita Tereso. "Algumas das pessoas da nossa organização conhecem pessoas que estão dentro deste barco neste momento." Não sabem quando é que o veleiro pode chegar ao Egipto ou se vai conseguir atracar, mas é uma hipótese em aberto que as iniciativas se venham a juntar.

Também se poderão cruzar com a organização não-governamental tunisina Somoud, que partirá no dia 9 de junho da Tunísia e vai percorrer o Norte de África até Gaza, transportando ajuda humanitária em camiões.

"É uma parceria, mas não é. Não fazem mesmo parte da Global March to Gaza", sublinha a professora de Português para Estrangeiros. "Nós não sabemos que participantes vêm do lado deles, não sabemos como eles estão a fazer a seleção dos participantes", ressalva. "Se calhar algumas pessoas de outros países à volta também se vão juntar a estes camiões de ajuda humanitária, mas não sabemos exatamente quantas pessoas são, como é que estão organizados."

O que se vai passar no terreno é uma incógnita a vários níveis — e também neste aspeto. "Nós vamos andar e eles vêm de camião. É possível que eles se juntem a nós no primeiro dia, mas depois até podem ir mais rápido, chegar lá primeiro ou esperar na cidade. Nós depois vamos conversar com eles e vamos decidir quem vai primeiro", afirma a porta-voz.

No início de maio, já tinha havido uma tentativa da Coligação Flotilha da Liberdade chegar ao enclave, mas o navio “Conscience” foi atingido por dois alegados "drones" (aeronaves não tripuladas), quando navegava em águas internacionais perto da costa de Malta, o que acabou por sabotar os planos da ONG — que culpou Israel pelo ataque.

Sobre esse incidente, o porta-voz das IDF, Effie Defrin, disse que os militares estão “preparados para defender os cidadãos do Estado de Israel em todas as frentes – no Norte, no Sul, no Centro e também na arena marítima”. Questionado especificamente sobre o Madleen, o general frisou que as as forças israelitas estão “preparadas também para este caso”. “Adquirimos experiência nos últimos anos e vamos agir em conformidade”, acrescentou.

Num momento em que Gaza vive uma das piores crises humanitárias do século, a marcha pretende que os olhos do mundo se voltem para Rafah.