Portugal teve a sua “Corte das Mulheres”. Uma história de luz e sombra recuperada por André Canhoto Costa - Atualidade

Durante quase um século, entre os reinados de D. Manuel I e D. Sebastião, a Corte portuguesa conheceu um brilho invulgar — feminino, culto, apaixonado. Uma história, luminosa e trágica, que André Canhoto Costa recuperou para o seu mais recente livro, A Corte das Mulheres (edição Quetzal). Fruto de uma aturada investigação, o historiador revela-nos um tempo em que mulheres como Joana Vaz, Luísa Sigeia ou Paula Vicente não apenas liam e escreviam, mas aconselhavam embaixadores, desafiavam poetas e organizavam bibliotecas reais. Inspiradas pela Renascença italiana, estas figuras debateram o amor, o desejo e o poder num dos períodos mais exuberantes da cultura portuguesa.

No entanto, esse mundo ruiu — silenciosamente — sob o peso de uma história que foi escrita por outros. Que destino tiveram essas mulheres? E por que razão a sua memória foi tão rapidamente apagada? Questões às quais procuramos dar resposta na entrevista a André Canhoto Costa, historiador, romancista e cronista.

Com a sensibilidade de romancista e o rigor do historiador, André Canhoto Costa mergulha neste capítulo esquecido da história portuguesa, dando corpo a um universo feminino que desafia o silêncio imposto pelo tempo. Nesta entrevista, partilha os caminhos da investigação que sustentam o livro, revela as mulheres que o surpreenderam e reflete sobre a urgência de recuperar memórias que a narrativa oficial preferiu apagar.

No seu mais recente livro, dá voz a um conjunto de mulheres notáveis que, no século XVI, assumiram um papel central na vida intelectual da corte portuguesa. Como germinou a ideia de transformar este tema numa obra de fundo como aquela que nos entrega? Houve um momento decisivo ou uma inquietação persistente? E, quais os critérios que presidiram à escolha das figuras femininas que traz para o seu livro?

O mundo da escrita, o controlo sobre a ciência e o conhecimento, e o papel da informação na manipulação política são temas que me acompanham desde há mais de 20 anos, quando escrevi os primeiros trabalhos de investigação. Na verdade, fui bastante influenciado por uma geração de professores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, comprometidos com a importância da história cultural. Também a leitura de um livro antigo de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (A Infanta D. Maria de Portugal e As suas Damas) foi decisivo para a minha visão sobre o renascimento português. Esse livro deixava pistas sobre essa Corte algo misteriosa – apelidada de autêntica Universidade Feminina por autores do século XVI.

A dada altura comecei a perceber que existia uma forte ligação entre o problema da literacia, o papel das mulheres na sociedade e o progresso político e económico da Europa. A partir de 1500-1520, a Península Ibérica choca a Europa com a sua ambição comercial e territorial, as suas viagens à Índia e à América, e há em Portugal um grande entusiasmo pelos novos livros – a reinvenção do futuro com os pés bem assentes na profunda leitura dos clássicos gregos e romanos.

Essa é também uma época em que, não por acaso, algumas mulheres tomam em mãos um projeto ambicioso, em torno de bibliotecas apetrechadas com os livros mais polémicos, ensaiando ideias sobre a vida e a arte, e até sobre o regime político. Estas ideias tornam-se explosivas nas décadas de 1540-1550. Além disso, as cortes renascentistas promoveram o despique intelectual, a paixão pela poesia e a sátira, pela provocação humorística. Homens e mulheres dançavam, cantavam, representavam e conversavam longamente sobre o amor, a paixão, os desejos e os seus efeitos.

O estudo minucioso destes despiques e da poesia produzida de improviso nestes serões permite estudar o mistério dos desejos e da vida íntima da época, sobre a qual sabemos muito pouco. Passando a imodéstia, não se compreende Camões sem a Corte das Mulheres. Até hoje temos ficado encalhados na análise descontextualizada da sua biografia, para a qual quase não existem fontes documentais. Mas muita da novidade, frescura e realismo na expressão do amor em Camões, pode ser mais bem explicada por este mundo de mulheres exímias leitoras, escritoras e protetoras de escritores perseguidos pela máquina burocrática e política das Coroas ibéricas. Estas ideias foram alinhavadas num ensaio para a revista LER, e em conversa com o Francisco José Viegas chegámos à conclusão de que era fundamental escrever o livro e publicar esta visão, depois de quase 20 anos a ler e a investigar sobre o tema.

André Canhoto Costa André Canhoto Costa.

Para além das explicações habituais — como o patriarcado estrutural ou o apagamento consciente das figuras femininas — que outras dinâmicas, talvez mais subtis ou inadvertidas, encontra para explicar a obliteração destas mulheres da memória histórica oficial? Há fatores culturais, institucionais ou até académicos que possam ter contribuído silenciosamente para esse esquecimento?

É preciso dizer que este é um silêncio da história comemorativa. Onde o Estado Novo, muito mais do que a Monarquia Constitucional e a República, se tornou um campeão do anacronismo e do silenciamento. Desde os anos 90 apareceram trabalhos a recuperar a vida e a importância de muitas destas mulheres. Carla Alferes Pinto, Ana Isabel Buescu, mais recentemente a Catarina Monteiro – para dar alguns exemplos – escreveram teses, artigos e livros sobre algumas das protagonistas, sobretudo a Infanta Maria, Luísa Sigeia e Juana de Áustria.

O livro também nasceu dessa vontade de recolocar a importância das Humanidades no debate público, mostrando o excelente trabalho feito nas Universidades portuguesas O que tem permitido construir uma imagem mais rigorosa e completa de uma época fundamental da história portuguesa e europeia.

Existe uma nova moda, que tende a desvalorizar as diferenças das instituições na comparação entre Portugal e a Inglaterra ou os Países Baixos ao longo do século XVI. A ideia de que apenas se produz conhecimento contrariando a sabedoria dita convencional gera os frutos mais estranhos. A forma mais fácil de ganhar notoriedade passa por vezes por defender coisas descabidas. Mas por muitas voltas que queiramos dar, muitos dos problemas da condição feminina em Portugal ao longo de séculos começam a definir-se na tragédia do século XVI. A reação católica ibérica acaba por aprofundar a reclusão feminina e reforçar a submissão jurídica da mulher.

Estas mulheres tomaram em mãos um projeto ambicioso, em torno de bibliotecas apetrechadas com os livros mais polémicos.

Chegados a 1970, uma em cada três mulheres era analfabeta e apenas uma em cada duzentas mulheres tinha formação superior. É também disto que estamos a falar. Quando se destaca, por exemplo, de forma descabida, o crescimento económico do Estado Novo, isso representa uma escolha, péssima, diga-se de passagem. Uma escolha que opta por desvalorizar a repressão e a manutenção da menoridade feminina durante o Estado Novo, quando a Europa e o Ocidente estão já a trilhar caminhos completamente diferentes.

A história destes debates em torno do estatuto feminino, e do papel desta Corte das Mulheres, não é apenas uma questão de ativismo político – e isso não seria um problema – mas fruto de uma necessidade de procurar mais rigor, consistência e compreensão de problemas históricos complexos. O livro retrata a revolução cultural renascentista, acelerada pela imprensa. uma revolução de tal dimensão que chegou a colocar em causa os fundamentos dos regimes monárquicos.

André Canhoto Costa nasceu em Oeiras em 1978. Estudou na Universidade de Évora e concluiu a licenciatura na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Doutorou-se em História Económica no ISEG. Publicou vários livros, entre os quais Os Vícios dos Escritores (2017) e As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal (2019). Escreve para a Revista LER e tem desde 2017 uma rubrica semanal, “Crónicas Portuguesas”, na RDP Internacional. Escreveu um dos volumes da coleção Portugal, Uma RetrospetivaPúblico/Tinta da China (2019). A Quetzal publicou o seu romance Como Sobreviver depois da Morte (2024).

O debate colocou em risco a própria Igreja Católica e a estrutura universitária do século XVI. E é por isso que a Companhia de Jesus não foi tanto uma adaptação da ideia de companhia empresarial, mas uma defesa da severidade universitária conservadora (por oposição ao humanismo, mais nómada, descentralizado e secularizado). E é também por isso que a Companhia de Jesus vai apostar tudo na fidelidade a Roma e no modelo católico de supremacia celibatária e masculina.

Pelas mesmas razões, a libertação e emancipação amorosa, social e política das mulheres, até à descoberta da pílula e às grandes revoltas iniciadas nos anos 60 do século XX, foram fenómenos causadores de grande ansiedade em parte do mundo masculino. Até as mulheres tomarem nas suas mãos e conquistarem o seu espaço nas universidades, muitos destes temas foram ignorados.

Espero que o livro demonstre como este tema é essencial para perceber as reformas protestantes e o triunfo das ideias de alfabetização universal. Do mesmo modo, a reação católica contra as grandes transformações institucionais, que levam à vitória de regimes mais democráticos no século XVII, e a própria diferença de desempenho económico, no norte e sul da Europa, só se compreende trazendo para o centro do debate os temas abordados neste livro, e em particular, o papel da Corte das Mulheres – e dos escritores aí protegidos – na luta contra o fechamento ideológico e cultural dos reinos ibéricos na segunda metade do século XVI.

O livro não se limita a biografias individuais, mas traça uma verdadeira teia de relações femininas. Como se estruturavam essas ligações? Existiam alianças explícitas, cumplicidades discretas ou até rivalidades subterrâneas entre estas mulheres?

Sim, claro. Onde existe liberdade existe conflito. Há uma rede de cumplicidades. Joana Vaz, professora de Latim e poetisa, deixou um legado de paixão pelos livros que Luísa Sigeia e a Infanta Maria aprofundaram. Luísa Sigeia apesar de sensivelmente da mesma idade da Infanta Maria (esta nascida em 1521) terá sido sua professora em línguas clássicas e a sua relação foi muito estreita. Mas é provável que se tenham afastado de forma algo intempestiva, durante a década de 1550. Luísa Sigeia, secretária, humanista, autora de qualidade impressionante, um verdadeiro fenómeno europeu na época, acabou por abandonar Portugal e isso terá sido a consequência de uma justa ambição, e até das esperanças políticas depositadas na Infanta Maria, de ascender ao lugar que julgava merecer. Também é muito claro como a dada altura existem tensões entre Catarina de Áustria e Juana de Áustria, sua nora e sobrinha. Apesar de o tema ser polémico entre historiadores, a rainha Catarina parece ter acompanhado a reação católica, enquanto Juana era na juventude muito alinhada com os novos ventos, os poetas, os jogos de cartas, a música e a dança, a leitura dos reformistas espanhóis, as práticas espirituais, os livros filosóficos, muitos na fronteira da heresia. Alguma historiografia mostra Juana mais tarde, junto da Companhia de Jesus, comparecendo nas cerimónias sinistras da Inquisição, mas julgo que terá mantido sempre um jogo duplo e um verdadeiro fascínio pelas ideias reformistas, apoiando tradutores, humanistas heterodoxos e escritores problemáticos, caso de Jorge de Montemor, perseguidos pela Inquisição e cujos livros foram proibidos.

Refere que estas figuras eram cultas, autoras, leitoras, conselheiras. Até que ponto julga que intervieram de forma determinante nas decisões políticas do reino? Poderia partilhar um exemplo concreto cuja ocorrência teria sido improvável sem a sua intervenção?

A questão central do livro é mesmo essa. Julgo que do ponto de vista da condução política, o projeto acabou por não ter consequências diretas, não conseguiu influenciar o rumo do governo e mesmo na política editorial, tudo acabou em desastre. Francisco de Morais e Jorge de Montemor morreram de forma violenta, Camões e Bernardim Ribeiro com toda a probabilidade morreram na miséria. E estou convencido de que o triunfo e o impacto da Inquisição, o controlo da Universidade de Coimbra pela Companhia de Jesus e a educação aplicada ao herdeiro do trono, Sebastião (filho de Juana de Áustria mas que apesar do interesse constante da mãe, parece nunca ter aceite a sua influência como aceitou a dos seus confessores padres e jesuítas) são em parte – mas não só, claro – a reação ao grupo formado em torno da Infanta Maria, onde se contavam pessoas – de João de Barros às irmãs Sigeias e Paula Vicente, filha de Gil Vicente – com ideias bastante diferentes sobre como viver, pensar e governar um reino.

Claro que o apoio aos escritores, a aceitação tácita de dedicatórias, a contratação de mulheres humanistas, foram decisões políticas com muito impacto. Por isso, esses livros foram proibidos, caso da Diana de Jorge de Montemor). Contudo, os temas clássicos de história política passam pela predominância do direito constitucional, o debate sobre a frequência da reunião dos povos, a evolução do parlamentarismo, a negociação da fiscalidade, a democratização do ensino e universidade, a substituição do latim como língua de ensino e a importância da ciência prática. Se pensarmos nesses grandes temas é óbvio que não se cumpriu o programa alinhavado no elogio à Infanta Maria por um escritor como João de Barros.

A Corte das Mulheres foi uma verdadeira universidade feminina, onde se discutiam o amor, a política e o poder.

O reinado de D. Sebastião é muitas vezes associado a um ambiente de fervor religioso e messianismo. Como coexistia a presença destas mulheres eruditas e críticas com um contexto tão marcado pelo misticismo? Estava latente um conflito entre estas duas visões do mundo?

A questão do fervor religioso é complexa. Pois existem muitas formas de fervor religioso. Pensemos em Erasmo. Foi um autor de importância fundamental na época. Convidado a ser cardeal, recusou, defendendo um regresso à religião interior, ao estudo do grego em que estavam escritos os evangelhos. Erasmo era caro a muitas destas mulheres poetisas e aos escritores, humanistas e músicos que foram procurando a proteção da Corte das Mulheres. Ora, a partir da morte de Erasmo, e com a inclusão dos seus livros no Index da Inquisição, todas as espiritualidades mais ligadas à laicização da vida entraram em conflito com o radicalismo papista e a aliança entre a Universidade e a Coroa. Erasmo, Rabelais ou Gil Vicente eram críticos ferozes da clericalização da sociedade. Camões denunciou a generalizada falta de honestidade dos religiosos. Talvez fosse excessivo, mas isso é claro em Camões. Logicamente, este grupo de mulheres comprometidas com a discussão de temas filosóficos, leitoras de Séneca, Plutarco e Cícero, habituadas a ler romances e livros de ficção, a organizar serões musicais e peças de teatro laico e satírico iria entrar em colisão com a brutal clericalização da Corte que se verifica a partir de 1555-1557. Alguns humanistas chegam a dizer desesperados que a Corte mais parecia agora uma escola de religiosos.

Sobre o autor - André Canhoto Costa créditos: Quetzal

Um aspeto da obra é o destaque conferido à improvisação poética como prática cultivada por estas mulheres. Que função exercia a poesia neste contexto? Seria apenas um requintado entretenimento de salão ou desempenhava, de facto, um papel estratégico na afirmação de poder e resistência?

A poesia era antes de mais uma escola de crítica social, um exercício para testar a inteligência e o comportamento. Alguns humanistas da época chegam a dizer que a Infanta Maria não é apenas mecenas, como outras rainhas e infantas. Possui uma pedagogia bastante aprofundada e uma consciência aguda dos problemas da educação. De resto, parece existir aí uma continuidade com os salões do tempo do rei Manuel I, onde esse jogo entre rapazes e raparigas constituiu uma escola de sedução. Onde a descrição e comentário das paixões, com os seus inícios ardentes e os seus desfechos melancólicos, faziam parte da educação da Corte. Essa liberdade – que talvez nos surpreenda – era mesmo uma celebração da vida. Uma celebração da vida em constante ligação com a descoberta dos deuses antigos, da beleza do corpo e do mundo natural. Descoberta em constante diálogo crítico com o catecismo católico. E é por isso que veremos em Camões o expoente máximo dessa angústia, expresso por exemplo no famoso poema sobre o momento em que uma das jovens damas, Guiomar, neta e filha de damas da Corte, se queima com uma vela. O fogo, associado na tradição cristã ao demónio e aos sofrimentos pecaminosos da fornicação, aparece aqui como imagem, simbolizando um efeito natural do desejo. E se os riscos são claros para Camões, também a natureza neutra e aleatória do amor, dependente da vontade dos amantes, remete para um mundo novo.

Alguns humanistas da época diziam que, se lhes fosse dada oportunidade, as mulheres suplantariam os homens nos estudos universitários.

Enquanto historiador, terá certamente enfrentado desafios no acesso e interpretação das fontes. Que materiais privilegiou na reconstrução destas vidas femininas e até que ponto foi necessário recorrer à leitura das entrelinhas, ao cruzamento de indícios e à intuição académica?

Sim, este livro só poderia ter sido escrito ao fim de duas décadas de estudo do tema. As fontes diretas, assinadas pelas protagonistas, são escassas. Mas sempre me pareceu que as fontes literárias podem revelar muito do que não sabemos, desde que confrontadas com um sólido conhecimento da época. É verdade que existiram abusos na interpretação da literatura. Pode inventar-se tudo sobre Camões, a partir do colossal mundo da sua poesia.

Em todo o caso, existem muitas informações acumuladas na literatura produzida, antes de mais pelas próprias mulheres, mas sobretudo nas crónicas antigas, em manuscritos e cancioneiros. Além disso, o bom trabalho académico recente permite avançar muito na interpretação de alguns problemas. É o lado mais técnico e o mais difícil de abordar aqui de forma sucinta, e sem referências a títulos, mas fiz questão de numerar todas as secções, para descrever no final do livro os estudos e fontes, onde baseei todas as descrições e interpretações, dando nota do que é especulativo e do que sabemos com segurança, de forma que o livro também possa servir leitores mais especializados.

Hoje, haverá quem se interrogue sobre a relevância do passado para os desafios contemporâneos. Que ensinamentos, advertências ou inspirações julga que estas mulheres nos legam, particularmente num tempo em que a igualdade de género permanece em debate?

Antes de mais, o livro implica um alerta. Em momentos de grande revolução tecnológica, as novas formas de comunicar – antes a imprensa, agora a internet e o digital – podem ser utilizadas de muitas formas. É fundamental aprofundar o debate sobre os impactos dos seus diferentes usos. A máquina de propaganda, quando combinada com a máquina censória, pode ajudar a criar o pânico social. E isso pode resultar na censura de todas as ideias desconfortáveis para quem é capaz de mobilizar a legitimidade popular e os recursos necessários para financiar os meios tecnológicos de informação. O jogo político entre as multidões e a defesa de ideias retrógradas é mais insidioso do que pensámos durante muito tempo. Uma das coisas surpreendentes é constatarmos como no século XVI, parte da hierarquia conservadora da Igreja Católica – embora também existissem bispos de grande cultura humanista e ideias progressistas, como é evidente – utilizou a imprensa para promover o fanatismo popular e aprofundar a legitimidade da Inquisição na perseguição e execução de heréticos, fossem judeus, protestantes ou simplesmente desobedientes.

Onde existe liberdade, existe conflito — e essas mulheres viveram ambos intensamente.

Permitindo-me uma provocação: acredita que os homens da corte estavam plenamente conscientes do alcance da influência feminina ou viviam, antes, imersos numa ilusão confortável de hegemonia masculina? Manifestavam tolerância, respeito ou, talvez, um certo receio perante este espaço feminino?

Essa foi uma das questões mais surpreendentes, ao reler muita da literatura da época, crónicas, romances, ou mesmo tratados jurídicos e descrições de costumes. Existia clara consciência de muitos autores, como André de Resende, Jorge de Montemor, Camões, e Duarte Nunes de Leão, da tenebrosa injustiça social, com a crescente reclusão das mulheres, o seu afastamento da vida pública, e os impedimentos colocados à sua escolarização. Mas não da tenebrosa injustiça, mas também do potencial que se perdia.

Alguns destes autores do século XVI antecipavam que as mulheres muito rapidamente suplantariam os homens nos estudos universitários, se lhes fosse dada essa oportunidade, o que veio a verificar-se em Portugal nos últimos 30 anos. Além disso, é importante notar que estes problemas não devem ficar encerrados numa visão superficial da identidade. Estas mulheres aliaram-se a alguns dos autores mais polémicos, cultos e lidos da época, à crítica de uma certa visão de monarquia e religião, fosse ou não apoiada por outras mulheres mais conservadoras. Do mesmo modo, o problema do amor entre pessoas de contextos sociais e estatutos diferentes seria um dos temas centrais na Corte das Mulheres e na literatura aí apreciada. O que unia a defesa dos direitos das mulheres (a expressão será utilizada num tratado jurídico da época) às críticas sobre as diferenças de rendimento e à forma como muitos poderosos tendiam a desvalorizar o conhecimento e o estudo. Isto pode parecer surpreendente, mas convido todos a ler os textos da época.

Entre todas as figuras que estudou, houve alguma cuja história pessoal o tenha particularmente surpreendido, comovido ou até perturbado — alguém por quem tenha sentido o impulso de escrever uma obra biográfica exclusiva?

Sem dúvida, Francisca de Aragão. Existem alguns textos da sua autoria, poesia e comentários a poemas, entretanto publicados em estudos literários. Mas sabemos muito pouco sobre a sua vida. Contudo, sabemos que casou muito tarde (para a época) e que era apreciada por Catarina de Áustria, ainda na sua adolescência, pela irreverência, cultura e velocidade de raciocínio. Se lermos as fontes indiretas, crónicas, correspondência, a poesia de Camões, os cancioneiros e os manuscritos com anedotas da Corte, tratava-se de alguém com uma personalidade fortíssima, brilhante na literatura, em permanente jogo intelectual com Camões e os outros poetas. De uma cultura imensa e discutindo de igual para a igual com os ministros e cortesãos. Sobreviveu uma anedota da Corte em que Francisca de Aragão, provavelmente ainda muito nova, provoca Camões – chamando-lhe cruelmente, “cara sem olhos”, ao vê-lo passar na rua, mas sabendo que o poeta, divertido, iria entrar no jogo. E existem vestígios de motes e desafios poéticos da sua autoria. Daquelas personalidades que, sem dúvida, acompanhou o sonho de uma participação política feminina, e que teria ajudado a mudar o rumo da Corte e do reino.