"As vítimas de crimes devem estar na vanguarda do sistema de justiça".
Com estas palavras contundentes, a Ministra da Justiça, Rita Júdice, abriu o Ano da Justiça de 2025 e apontou as feridas de uma das questões mais prementes da sociedade portuguesa: a violência doméstica. O Ministro não se limitou a palavras vazias.
Ele se referiu ao horrível caso de uma mulher assassinada pelo marido na frente dos filhos e perguntou: “O que o tribunal tem a dizer sobre essas crianças?"
Infelizmente, este exemplo cruel não é um caso isolado.
Esta é apenas a ponta do iceberg da realidade sombria que assola milhares de famílias portuguesas. Entre Janeiro e Setembro de 2024, 344 mulheres foram violadas em Portugal – uma média chocante de 38 por mês.
Durante o mesmo período, 18 pessoas foram mortas em consequência de violência doméstica, 15 das quais eram mulheres.
Estes são números que nos deveriam envergonhar como sociedade e exigir uma resposta urgente e eficaz.
Mas por trás destas frias estatísticas estão histórias de horror diário, vidas destruídas e sonhos destruídos.
Assim como Francesca, ela sofreu anos de insultos, calúnias e ataques físicos por parte do pai de seu filho mais novo.
E Louisa, que foi agredida verbal e fisicamente na véspera de Natal na frente da família do companheiro antes de finalmente encontrar coragem para fugir com o bebê nos braços.
Estas histórias são muitas vezes repetidas com pouca variação, mas sempre com o mesmo contexto de medo, vergonha e inadequação.
As vítimas sentem-se presas num sistema que muitas vezes parece proteger mais os agressores do que aqueles que sofrem nas suas mãos.
Como no caso de Madalena, cujas medidas de proteção expiraram porque o prazo foi ultrapassado no caso de Vânia, que sobreviveu a um ataque que a deixou em coma e os seus cinco filhos foram levados e encaminhados para uma instituição;
Este é um dos aspectos mais perturbadores e menos discutidos desta questão: o destino das crianças apanhadas no fogo cruzado da violência doméstica.
Muitas vezes a “solução” que o sistema encontra é institucionalizar, separar irmãos e enviá-los para locais distantes uns dos outros e das suas famílias.
Será esta a melhor ajuda que podemos prestar a estas crianças que já estão traumatizadas?
É este o futuro que queremos para a próxima geração?
O caso de Vanya é particularmente ilustrativo desta falha sistémica.
A mãe de cinco filhos, que sobreviveu a um ataque brutal que a deixou em coma durante mais de um mês, viu-se não só sem abrigo e sem meios de subsistência, mas também privada de contacto com os filhos.
Quatro deles foram entregues ao primeiro ex-agressor, ele próprio condenado por violência doméstica, enquanto o mais novo foi inicialmente entregue à avó adotiva.
Posteriormente, ambos foram institucionalizados e separados um do outro, obrigando a mãe, que não tinha recursos, a viajar pelo país para manter contacto com eles.
Devemos repensar a nossa abordagem à violência doméstica como um todo.
Apenas punir o agressor não é suficiente – embora seja necessário.
É necessário criar um sistema de apoio que permita às vítimas reconstruir as suas vidas com dignidade e segurança.
Isto inclui apoio psicológico, financeiro e habitacional, bem como medidas para manter as famílias unidas sempre que possível, em vez de as dividir ainda mais.
Esta abordagem holística deve incluir:
Há uma necessidade urgente de desenvolver uma rede de apoio jurídico de advogados que possam:
Crucialmente, deve haver uma abordagem à justiça que integre as perspectivas da família e do crime e reconheça que:
Para além das medidas já mencionadas, é também crucial implementar a imagem de “defensor das crianças”.
Este profissional será responsável por representar exclusivamente os interesses e direitos das crianças em casos de violência doméstica.
Os advogados das crianças garantirão que as vozes das crianças sejam ouvidas e consideradas em todas as decisões judiciais que as afetem, desde a custódia até medidas de proteção.
De acordo com o relatório anual da Comissão Nacional de Promoção e Proteção dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CNPDPCJ), em 2023, foram notificados à Comissão de Proteção 17.001 casos de violência doméstica contra crianças e adolescentes. Comissão das Crianças e Jovens (CPCJ)
Este número faz da violência doméstica o segundo perigo mais frequentemente reportado à CPCJ, depois da negligência.
Vale ressaltar que este valor não só representa um aumento significativo em relação aos anos anteriores, mas também inverte a tendência já observada.
A violência doméstica não é apenas uma das principais causas do declínio, mas também figura com destaque nos diagnósticos do Conselho Judicial.
Após avaliação, foram confirmados 4.338 casos de violência doméstica como situações perigosas, correspondendo a 26,31% dos diagnósticos perigosos.
Estes números alarmantes realçam a urgência de abordar de forma mais eficaz a violência doméstica, que não é apenas um problema que afecta os adultos, mas também uma ameaça significativa ao bem-estar e ao desenvolvimento das crianças e adolescentes em Portugal.
É importante reconhecer que não basta simplesmente alterar a legislação para combater eficazmente a violência doméstica.
É necessário dar tempo e proporcionar meios adequados para que esta legislação tenha efeitos concretos no terreno, nomeadamente:
As palavras do Procurador-Geral são um passo na direção certa, mas precisamos de ações concretas, imediatas e eficazes.
Precisamos de um sistema de justiça que realmente coloque as vítimas no centro da ação, ouça as suas vozes e responda às suas necessidades reais.
Precisamos de uma sociedade que não tolere qualquer forma de violência doméstica e que esteja disposta a intervir e apoiar os necessitados.
Os gritos silenciosos das vítimas de violência doméstica ecoam por todo o país.
Agora é a hora de ouvirmos e agirmos.
Porque cada vida perdida, cada família destruída, cada criança traumatizada, é um fracasso colectivo pelo qual todos somos responsáveis.
O futuro que oferecemos a estas vítimas (adultos e crianças) reflete a sociedade em que vivemos.
É hora de nos olharmos ao espelho e decidirmos: é este o Portugal que queremos ser?