O Tribunal Criminal de Braga estava particularmente solene naquela manhã de Novembro. A sala número 4, com as suas paredes forradas de azulejos azuis e brancos, tinha os lugares todos ocupados. Na bancada dos arguidos, sentado entre dois guardas prisionais, estava Pedro Sousa, de 32 anos, acusado de furto qualificado e dano contra a propriedade de uma galeria de arte no centro histórico da cidade.
"Que se levante o tribunal", anunciou o oficial de justiça.
O Juiz Dr. Henrique Monteiro entrou na sala, seguido pelos juízes adjuntos. Após sentar-se na cadeira central, começou a folhear os autos com a expressão grave que mantinha em todos os julgamentos.
"Processo número 156/2024, Ministério Público contra Pedro Miguel Sousa. Dr.ª Procuradora, pode dar início às alegações de abertura."
A Procuradora Paula Ribeiro levantou-se. "Meritíssimo, o Ministério Público acusa o arguido Pedro Sousa de, na madrugada de 15 de Agosto, ter arrombado a Galeria de Arte Moderna de Braga, localizada na Rua do Souto, furtando três telas de valor superior a 50.000 euros..."
Pedro olhava para as mãos algemadas sobre a mesa. Tinha sido apanhado pelas câmaras de vigilância, a sua identidade confirmada. Não havia como negar os factos. O seu advogado, Dr. António Faria, tinha-lhe aconselhado a confessar para obter uma pena reduzida.
"...e danos materiais estimados em 15.000 euros pela quebra do sistema de segurança e da vitrina principal."
O juiz fez algumas anotações e consultou a lista de testemunhas. "Chame-se a primeira testemunha, a senhora Clara Santos."
A porta da sala abriu-se e uma mulher de aproximadamente 28 anos entrou. Usava um vestido cinzento conservador, o cabelo castanho claro preso num coque baixo, e carregava uma pasta de documentos. Os seus olhos, de um verde incomum, percorreram rapidamente a sala até focarem-se no juiz.
"A testemunha pode dirigir-se ao estrado e fazer o juramento de lei."
Clara colocou a mão sobre a Constituição e proferiu o juramento ritual. Quando se sentou na cadeira de testemunha, os seus olhos cruzaram-se brevemente com os de Pedro. Ele sentiu um aperto no estômago que não tinha nada a ver com o nervosismo do julgamento.
Conhecia aquela mulher.
Não pessoalmente, mas... sim, era ela. A mulher que passava pela galeria todas as manhãs, sempre por volta das 8h30, sempre com um café na mão, sempre parando por alguns segundos para observar as peças expostas na vitrina. Era ela que tinha visto chorar na noite em que o sistema de alarme tinha falhado, três meses antes do roubo. Era ela que tinha deixado um guarda-chuva esquecido e que ele, num impulso que não conseguia explicar, tinha guardado para lhe devolver.
"Senhora Clara Santos", começou a Procuradora, "a testemunha trabalha na Galeria de Arte Moderna de Braga?"
"Sim, sou curadora assistente há dois anos."
"E estava presente na galeria na noite de 15 de Agosto?"
"Não, estava de férias. Mas sou responsável pelo inventário das obras e pelo registo das câmaras de vigilância."
A Procuradora mostrou várias fotografias das câmaras de segurança. Em cada uma delas, Pedro aparecia claramente: forçando a entrada, usando uma lanterna para examinar as obras, colocando as telas num saco.
"Consegue identificar o indivíduo nestas imagens?"
Clara pegou nas fotografias, estudou-as cuidadosamente. Os seus olhos moveram-se para Pedro, sustentaram o olhar por um momento mais longo do que necessário.
"Sim, é... é o arguido."
"E pode descrever as obras que foram furtadas?"
"Sim. Eram três telas de artistas locais. Uma era 'Tempestade sobre o Cávado', de João Barbosa. Outra era 'Reflexos', de Ana Moutinho. E a terceira era..."
Clara hesitou. Os seus olhos voltaram-se para Pedro.
"...era 'Solidão Urbana', de Miguel Fernandes."
Pedro baixou os olhos. Conhecia aquela obra. Tinha sido a que mais tempo tinha observado nessa noite. Não sabia explicar porquê, mas algo nela o tinha tocado. Um homem solitário numa rua vazia, com apenas um guarda-chuva para o proteger da chuva. Parecia... familiar.
"Senhora Clara", continuou a Procuradora, "além do valor monetário, que impacto tiveram estes furtos na galeria?"
"Foram... devastadores." A voz de Clara tremeu ligeiramente. "Aquelas obras faziam parte de uma exposição comemorativa. Artistas locais que tinham lutado para ter o seu trabalho reconhecido. O João Barbosa tinha morrido no mês anterior. Aquela ia ser a sua última exposição."
Pedro sentiu um peso no estômago. Não tinha pensado nisso. Para ele, tinham sido apenas objetos de valor que podia vender.
"E tem alguma informação sobre onde possam estar as obras agora?"
"Não. Ainda não foram recuperadas."
O juiz permitiu que o advogado de defesa procedesse ao contrainterrogatório.
"Senhora Clara", começou Dr. António Faria, "quando diz que o impacto foi devastador, pode ser mais específica?"
"As obras tinham um valor sentimental imenso para as famílias dos artistas. E para nós, que as tínhamos preparado durante meses..."
A Procuradora voltou a intervir. "Meritíssimo, gostaria de mostrar à testemunha mais uma imagem."
Projetou no ecrã uma fotografia estática das câmaras de vigilância. Pedro estava junto à vitrina principal, com a lanterna apontada para 'Solidão Urbana'. Mas a imagem capturava algo mais: ele estava parado, observando a obra, com uma expressão que não era de quem procura o melhor ângulo para roubar.
"Senhora Clara, consegue descrever o que vê nesta imagem?"
Clara estudou a fotografia cuidadosamente. "O arguido parece... parece estar a observar a obra. Não como..." a sua voz suavizou-se, "não como alguém que está a avaliar um objeto para roubar."
"A testemunha não deve interpretar as intenções do arguido", advertiu a Procuradora. "Por favor, descreva apenas o que vê objetivamente."
"Desculpe, Dr.ª Procuradora. Vejo o arguido a observar a obra durante aproximadamente 47 segundos, conforme o registo temporal da câmara."
Pedro olhou para Clara. Havia algo nos olhos dela, uma compreensão que o surpreendeu. Por um momento, sentiu como se ela conseguisse ver além da acusação, além do acto criminoso.
O juiz declarou um intervalo de quinze minutos. Enquanto Pedro era escoltado para uma sala adjacente, viu Clara a sair da sala de audiência. Por impulso, quando passou por ela no corredor (sob supervisão de um guarda), murmurou:
"Eu não sabia. Sobre o artista que morreu."
Clara parou, virou-se ligeiramente. "Eu sei", disse ela, quase num sussurro. "Eu vi."
"Como?"
"Nas câmaras. A forma como olhaste para 'Solidão Urbana'. Eu... eu sempre parava naquela obra de manhã. Algo nela falava comigo."
O guarda prisional interveio: "Já chega. Vamos."
Mas antes de serem separados, Clara acrescentou: "O teu guarda-chuva. Tu tens o meu guarda-chuva."
Quando a audiência recomeçou, algo tinha mudado. Pedro estava mais atento, menos resignado. Clara mantinha um profissionalismo rigoroso, mas havia uma energia diferente no ar.
"Dr.ª Procuradora, tem mais perguntas para a testemunha?"
"Sim, Meritíssimo. Senhora Clara, durante a sua investigação sobre o furto, encontrou alguma indicação sobre a motivação do arguido?"
Clara hesitou. Esta era a pergunta que tinha estado a temer.
"Nós... encontrámos algumas coisas peculiares."
"Pode elaborar?"
"As obras foram furtadas, mas não houve tentativa imediata de venda. Verificámos os canais habituais, mercado negro, leiloeiras online..."
"O que sugere isso?"
"Que talvez... talvez não tenha sido apenas motivado por lucro."
A sala ficou em silêncio. Pedro olhou para Clara, surpreso. Ela estava a arriscar o seu testemunho, a sua credibilidade, por ele?
O juiz ajustou os óculos. "Senhora Clara, está a sugerir que havia outra motivação?"
"Eu... estou apenas a relatar os factos que encontramos na investigação."
"Que factos?"
Clara respirou fundo. "As câmaras mostram que o arguido passou mais tempo a observar as obras do que a roubá-las. E houve um incidente três meses antes..."
"Que incidente?"
"Uma falha no sistema de alarme numa noite de tempestade. Um visitante regular da galeria entregou um guarda-chuva que uma mulher tinha esquecido nesse dia. Esse guarda-chuva foi deixado com uma nota que dizia 'para a mulher que gosta de apreciar arte na chuva'."
O coração de Pedro acelerou. Como é que ela sabia disso?
"E isso tem relevância para o caso?"
"A caligrafia da nota coincide com a das assinaturas que o arguido deixou em documentos anteriores."
Pedro não conseguiu mais manter o silêncio. Levantou-se bruscamente.
"Meritíssimo, posso falar?"
O juiz olhou para ele com surpresa. "Senhor Pedro, deve comunicar através do seu advogado."
"Por favor. Tenho de dizer a verdade."
O advogado tentou fazer-lhe sinal para se sentar, mas Pedro continuou.
"Eu... eu roubei as obras. Mas não foi pelo dinheiro."
"Pedro, senta-te", sussurrou o advogado.
"Não. Ela precisa de saber."
Virou-se para Clara, ignorando os protocolos do tribunal.
"Eu via-te todas as manhãs. Via como olhavas para aquela obra, 'Solidão Urbana'. E eu... eu olhava para ela de noite, depois de a galeria fechar. Esgueirava-me, mantinha-me nas sombras. Sentia que era a única coisa que me entendia."
"Quando roubei as obras, ia vender as outras duas. Mas 'Solidão Urbana'... não conseguia. Está na minha cave, num lugar seguro. Eu... eu queria devolvê-la. Todas elas. Só não sabia como."
A sala estava em silêncio total. Clara tinha lágrimas nos olhos.
"E aquela noite, a noite da tempestade, quando o alarme falhou... vi-te a chorar. Não sei porque estavas triste, mas... queria fazer algo. Por isso guardei o teu guarda-chuva para te devolver no dia seguinte. Mas tu não vieste."
"Estava de férias", murmurou Clara. "A minha mãe... a minha mãe tinha morrido naquele dia."
Pedro sentou-se, derrotado. "Eu sou idiota. Pensei que se roubasse aquelas obras, se forçasse um confronto, talvez te encontrasse. Talvez pudesse devolver o guarda-chuva e dizer... dizer que sempre admirei a forma como olhavas para a arte."
O juiz tomou algumas notas. "Esta audiência está suspensa. Vou precisar de consultar os meus colegas."
Quando os juízes saíram, Clara aproximou-se da bancada dos arguidos.
"Pedro", disse ela, com lágrimas nos olhos, "és o homem mais estúpido que conheci na minha vida."
"Eu sei."
"E também o mais romântico."
Pedro olhou para ela, surpreso.
"As obras... onde estão exatamente?"
"Todas na minha cave. Intactas. Eu... eu não conseguia danificá-las."
"O teu advogado vai aconselhar total colaboração. Se devolveres as obras, se mostrares genuíno arrependimento..."
"Não é arrependimento", interrompeu Pedro. "É... é amor. Por ti, pela arte, por aquele momento todas as manhãs quando tu paravas e sorrias para aquelas obras."
A sentença tinha sido condicional: dois anos com pena suspensa, trabalho comunitário na galeria, e a devolução integral das obras. O juiz tinha sido influenciado pela natureza única do crime e pela colaboração completa de Pedro.
Numa tarde de Maio, Pedro estava na galeria, ajudando a montar uma nova exposição. Clara aproximou-se dele, segurando dois cafés.
"'Solidão Urbana' vai ser vendida na próxima semana", disse ela.
"Eu sei. Para uma coleção privada em Lisboa, não é?"
"Na verdade", Clara sorriu, "foi comprada por uma coleção muito mais próxima."
Estendeu-lhe um documento. Era um certificado de compra em nome de Pedro Sousa.
"Eu... o que? Como?"
"Os meses de trabalho comunitário contaram como pagamento parcial. E eu... eu usei as minhas poupanças para o resto."
Pedro ficou sem palavras.
"Ela pertence-te tanto quanto a mim", disse Clara. "E pensei que era adequado que estivesse na casa de alguém que a compreende."
"Clara..."
"E Pedro? Sobre aquele guarda-chuva..."
"Tenho-o em casa. Guardei-o todos estes meses."
"Ótimo. Porque vai ser a tua desculpa para vires jantar comigo hoje. O tempo diz que vai chover."
Pedro sorriu, beijou-a suavemente. "Sabes que eu ia roubar uma obra de arte por ti?"
"Sei. E sabes que eu ia mentir num tribunal para te proteger?"
"Não mentiste. Apenas... apresentaste os factos de uma perspetiva romântica."
"Exatamente. Agora vem. Temos uma galeria para organizar e um jantar para preparar."
Enquanto saíam da galeria, Pedro pegou na mão de Clara. Na parede, 'Solidão Urbana' estava pendurada numa posição de destaque, com uma pequena placa que dizia: "Comprado em honra do amor que pode surgir nos lugares mais improváveis - até mesmo numa sala de tribunal."
E todas as manhãs, Clara e Pedro paravam em frente à obra, partilhavam um café, e lembravam-se de como o amor, mesmo quando surge de um erro, pode ser a única verdade que importa.
Um ano depois, numa cerimónia civil no Palácio da Justiça de Braga, onde tinham se conhecido de forma tão inusitada, Clara e Pedro casaram. O Juiz Monteiro oficiou a cerimónia, fazendo uma referência humorística ao caso que os tinha unido:
"É com grande prazer que vos declaro marido e mulher. E pela primeira vez neste tribunal, posso dizer que a sentença foi definitivamente 'felizes para sempre'."
Na sua casa renovada, 'Solidão Urbana' estava pendurada na sala de estar, com um guarda-chuva de madeira pendurado ao lado - não como decoração, mas como lembrança de que às vezes os gestos mais simples podem mudar vidas inteiras.
E quando chovia, Pedro e Clara sentavam-se em frente à obra, bebiam chá quente, e agradeciam ao destino pelas tempestades que às vezes nos levam exatamente para onde precisamos estar.
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