No rescaldo do apagão desta segunda-feira, João Galamba e Nuno Ribeiro da Silva falam da necessidade de investimento em redes, em particular na digitalização e na implementação a uma maior escala.
No rescaldo do apagão de eletricidade que afetou Portugal esta segunda-feira, os consultores de Energia João Galamba e Nuno Ribeiro da Silva, respetivamente ex-secretário de Estado da Energia e ex-CEO da Endesa, falaram com o ECO/Capital Verde sobre esta falha no sistema e eventuais soluções. Sobre as causas, ambos inclinam-se para a tese de que terá ocorrido um erro na gestão do sistema, algo a confirmar. Os investimentos em rede, em particular na sua modernização e digitalização, são mencionados como essenciais para prevenir e lidar com falhas semelhantes no futuro. Pelo caminho, Nuno Ribeiro da Silva é crítico do oportunismo por parte de partidos políticos e comentadores na exploração que tem sido feita da situação, e João Galamba toma a constituição de uma Comissão Técnica Independente, por parte do Governo, como campanha política.
Leia a entrevista, editada, ou assista na íntegra no vídeo:
powered by Advanced iFrame free. Get the Pro version on CodeCanyon.
Nuno Ribeiro da Silva: Diria que já se vai sabendo. Agora, como é um apontar de responsabilidades que tem muitas implicações, porque é grave, porque houve prejuízos económicos, porque houve riscos em termos de segurança, quem vai investigar – não só a nível nacional, mas mesmo a nível do sistema europeu, a Eurelectric está a fazer também essa análise –, quer ter, como se costuma dizer, “cintos e suspensórios” quando apontarem o dedo à responsabilidade. Sem poder confirmar, apontaria para falha humana na operação da rede. Mas, vamos ver.
João Galamba: Isso vai ter de ser investigado. Independentemente de se perceber em concreto o que esteve aqui em causa, há coisas que já podemos afastar. Houve algumas pessoas que apontaram eventuais erros na política portuguesa, que teriam desguarnecido o sistema, nomeadamente o encerramento de centrais a carvão. Não se percebe em que medida é que a existência e operação das centrais a carvão à hora que ocorreu o apagão pudesse evitar o apagão, na medida em que elas não estariam a funcionar. Naquela altura o consumo estava a ser plenamente satisfeito, portanto não havia falta de geração. (O apagão) não foi exatamente por não existirem centrais a carvão. (O problema) não é a aposta em renováveis e o encerramento de centrais a carvão, ou a não aposta adicional no nuclear, que alguns dizem que poderiam evitar o que se passou ontem. Parece sim serem exigências decorrentes de sistemas elétricos crescentemente complexos, que implicam adaptação e modernização dos procedimentos, das tecnologias utilizadas para garantir a operação estável e segura do sistema. Terá seguramente a ver com o modo de operar e gerir o sistema elétrico e não com problemas de falta de energia ou de potência.
JG: O tentar evitar o apagão, e depois de haver o apagão o restabelecimento do serviço, é uma responsabilidade exclusiva e única dos operadores de rede. Portanto, à pergunta de se eu estivesse no Governo faria algo diferente, acho que não. Quanto muito, há aqui um elemento de novidade, pela dimensão do choque e das exigências que isso coloca a quem gere o sistema e à própria rede, em que nenhum país está verdadeiramente preparado, porque é uma realidade emergente com a qual estamos a lidar agora e que estamos todos a aprender. Aquilo que espero é que este acontecimento grave nos leve a dar a devida importância aos investimentos em rede, em baterias, em instrumentos vários que são necessários quando há muitas renováveis, para lidar com o problema da inércia. Nenhum sistema, por mais seguro que seja, está isento destes riscos, até porque um sistema não sujeito a estes riscos seria de tal forma oneroso que não se justifica.
NRS: É sempre aqui também uma questão de proporcionalidade. Isto não é impossível de acontecer, mesmo que daqui se tirem lições para redundâncias acrescidas sobre o sistema.
NRS: Para tirar lições, temos de ter um relatório já acabado de onde esteve a falha ou as falhas. E isso não pode demorar muito tempo. Espero que o relatório surja em poucos dias. Depois, daí, tirar-se-ão ilações: a comunicação entre operadores de sistema de Espanha com Portugal, França, entre outros, pode ser tornada mais célere e rápida? É difícil ser mais rápida que a velocidade da luz, que foi o que aconteceu. Será que não existem suficientes sensores para detetar que, em dado local de um sistema elétrico complexíssimo, surge um alerta, a tempo de anteciparmos uma reação? Será que temos que reforçar redes? Mas também não esqueçamos que um acidente com esta dimensão e com tanta complexidade em repor o serviço elétrico nunca aconteceu. Ou seja, temos dezenas de milhares de dias em que tudo funcionou bem.
Espero que o relatório surja em poucos dias.
JG: Não me parece que a natureza pública ou privada do operador de rede, neste caso concreto, faça muita diferença. Porque temos exatamente o exemplo de um operador de rede 100% público (em Espanha, a Red Eléctrica) e de um operador de rede 100% privado, ou melhor, em regime de concessão do serviço público (em Portugal, a REN), e o apagão ocorreu nos dois países.
NRS: Há uma coisa que francamente me choca: perante uma situação crítica, desagradável, que causa prejuízos económicos e que pode causar problemas de segurança às pessoas, aparecerem, seja a nível dos partidos políticos, seja a nível de alguns comentadores, que têm os seus ódios de estimação e têm as suas fixações e as suas obsessões, a vomitar o fel todo que lhes vai na alma. É de um oportunismo inacreditável.
NRS: O PCP que vem dizer: ‘ah, isto é porque tudo foi privatizado, os operadores elétricos são privados, os operadores de telecomunicações são privados… E, portanto, é preciso é recomprar essa coisa toda’. O Chega, a dizer: ‘vamos pedir responsabilidades’. Quando se ouve as razões e os comentários, percebe-se que a pessoa não percebe nada do que está a dizer. Dos comentadores, ouvi de um: ‘porque fecharam o carvão…(impactou negativamente no caso do apagão)’. Ou vir alguém dizer que foi grande especialista há 55 anos de gestão da segurança do sistema ibérico, quando está longe de ser algo comparável ao que é um sistema elétrico nos nossos dias. É feio, sobretudo quando as pessoas não têm de saber destes assuntos e estão preocupadas.
JG: Avançar mais rapidamente para aquelas medidas que se consideram como condições necessárias para a introdução fiável de renováveis no sistema, nomeadamente temas relacionados com o armazenamento, e uma maior preocupação e maior coordenação entre o regulador e a REN para aprovar alguns investimentos e alguns procedimentos necessários para a REN poder lidar melhor com este crescentemente complexo sistema que está a seu cargo.
(Uma Comissão Técnica Independente) não acrescenta muito ao que já existe, porque esse tipo de estudo já está previsto. Mas estamos em campanha eleitoral e, portanto, é natural que o senhor primeiro-ministro tenha querido aparecer como uma espécie de Almirante Gouveia Melo.
JG: Não acrescenta muito ao que já existe, porque esse tipo de estudo já está previsto. Mas estamos em campanha eleitoral e, portanto, é natural que o senhor primeiro-ministro tenha querido aparecer como uma espécie de Almirante Gouveia Melo.
NRS: Se a questão da comunicação entre operadores de sistema não está absolutamente oleada e funcionar da maneira mais célere possível, haverá que ver como é que é feita essa comunicação entre operadores de sistema, porque têm que estar articulados, porque a rede está interligada. Têm de ter de facto uma coordenação partilhada. Se é um problema de zonas ou uma parte do sistema elétrico, ou inclusivamente uma unidade, uma subestação, uma linha que não tem redundâncias, é aí que é preciso (atuar).
Um maior investimento em redes é essencial.
NRS: Um maior investimento em redes é essencial.
JG: Mas a rede tem muitas componentes. O maior investimento em redes não é só fazer mais linhas e mais subestações. Há depois toda a área de digitalização e de gestão, toda a parte de sistemas. A REN já está fortemente digitalizada, mas avançar ainda mais nessa matéria. Usar por exemplo a inteligência artificial, porque a certa altura a complexidade e o volume das variáveis é tão grande que os mecanismos tradicionais, em que um conjunto de gestores está numa sala de controlo, já não consegue fazer as decisões ótimas. Precisam da inteligência artificial, não para os substituir, mas para os ajudar a desempenhar.
NRS: Uma parte dos softwares e dos sistemas de monitorização, dos sensores, tem muito a ver com as redes inteligentes. Monitorizar a tensão naquela zona ali do bairro, (saber) se a linha de alimentação está a entrar em sobrecarga… Portanto, consigo antecipar situações que começam a ser luz laranja antes de chegar à luz vermelha.
NRS: Hoje, se for ver, todas as empresas elétricas de grande responsabilidade a nível da Europa estão inclusivamente a reformular os seus planos de investimento a médio prazo, para pôr mais meios na rede.
A minha única sugestão aí, se calhar, era ser um pouco mais ambiciosos na adoção mais generalizada dessas soluções e não tanto a repetição sucessiva de pilotos. Se calhar, o passo que falta dar é mesmo a adoção em maior escala de certos sistemas, tanto do lado da REN como da E-Redes, sobretudo da REN.
NRS: Aqui em Portugal isto aplica-se.
JG: O plano de investimentos é bastante ambicioso e já responde a esse aumento significativo de investimento em redes. A única coisa que se calhar é importante dar também atenção, pelas razões que eu disse há pouco, é: como nem toda a melhoria das redes implica investimento físico em redes, garantir que esse investimento é o necessário, mas ótimo, e portanto que não se sobreinveste em redes. A E-Redes e a REN já estão a dar alguns passos algo tímidos nestas áreas, porque é natural, porque são naturalmente conservadores, porque estão a lidar com um sistema muito complexo. Mas tanto a REN como a E-Redes já adotam sistemas desta natureza. A minha única sugestão aí, se calhar, era ser um pouco mais ambiciosos na adoção mais generalizada dessas soluções e não tanto a repetição sucessiva de pilotos. Se calhar, o passo que falta dar é mesmo a adoção em maior escala de certos sistemas, tanto do lado da REN como da E-Redes, sobretudo da REN.