Na Casa Américo, o “resíduo zero” era o passo mais natural a dar | Reportagem

Com cerca de 150 hectares de vinha própria no Dão, espalhados por várias parcelas em Gouveia, a Casa Américo (Seacampo) é um projecto nascido em 2009 — ou, antes, bem antes disso, com o regresso à terra de Américo Seabra e a exploração das primeiras vinhas — e cujo foco foi sempre a qualidade. Não foi a promoção ou sequer o enoturismo, mas a qualidade do vinho. Apesar de o foco dos negócios da família estar no retalho alimentar — que tem nos EUA a cadeia de supermercados Seabra Foods e Seabra’s Market —, só no vinho, com a Seacampo, os Seabra facturaram, em 2024, dois milhões de euros.

Nas mãos da geração dos seis filhos do senhor Américo, a Casa Américo é um produtor discreto, onde as decisões são feitas à americana, por um “board” em que têm assento os responsáveis pelas diferentes áreas de trabalho e em quem os irmãos confiam. Nessa filosofia de liberdade com responsabilidade, não houve grande discussão no momento de experimentar algo novo na vinha, corria o ano vitícola de 2019. A certificação de 14,5 hectares de vinha na Quinta do Paço em modo de produção “Resíduo Zero” chegaria bem mais tarde, com o primeiro vinho certificado, um Touriga Nacional de 2023 (ver notas de prova ao lado), a ser lançado recentemente.

Conta-nos Luís Sousa que não ia à procura de uma certificação. “Na viticultura, mas também nas outras culturas, estamos todos um bocadinho atrapalhados por causa dos produtos e das substâncias activas que estão a ser retiradas do mercado. E, em conversa com uma empresa que vende produtos Resíduo Zero — a certificação é espanhola, mas tem representantes em Portugal —, resolvemos experimentar.” A atrapalhação de que fala o engenheiro responsável pela viticultura na Casa Américo vem do facto de a União Europeia querer, com a sua “Estratégia do Prado ao Prato” (inserida no Pacto Ecológico Europeu), reduzir em 50% a utilização de pesticidas químicos nos seus países-membros até 2030, de forma a atingir a neutralidade climática até 2050.

A certificação em “Resíduo Zero”, da espanhola Zerya, já é uma realidade em muitos negócios de hortofrutícolas e, em Portugal, é gerida pelo Continente (do grupo Sonae, que também detém o jornal PÚBLICO), que a exige a quem entra no seu Clube de Produtores. Mas há uma excepção, explica Luís, para o vinho e para o azeite. A Casa Américo não tinha, por isso, um ponto de partida, sequer um exemplo que pudesse seguir no sector vitivinícola. Mas não partiu propriamente do zero.

“Experimentámos, durante três anos, os tais produtos de resíduo zero num hectare de Touriga (Nacional) e chegámos à conclusão que, a nível de custos, e comparando com o (modo de produção) convencional que tínhamos nas outras vinhas, os custos eram quase idênticos. Havia ali uma diferença de 20 a 30 euros por ano. Eu ia vendo sempre o comportamento da vinha, e a nível de produtividade não houve quebras, mas só no quarto ano é que vinificámos à parte esta Touriga. Já que tínhamos tido o trabalho, fomos ver que vinho dava.”

Ora, 30 euros a mais num ano não era nada, comparando com o prometido ganho ambiental de produzir uvas e vinho de forma mais sustentável. Nesta altura, é preciso dizer que o resíduo zero é algo polémico entre as organizações que representam a agricultura nacional e mesmo entre produtores e defensores do biológico, sobretudo por haver um controlo dos níveis de pesticidas utilizados em análises feitas a posteriori.

Luís Sousa e Pedro Pereira são, respectivamente, responsáveis pela viticultura e pela enologia da Casa Américo Adriano Miranda

Mas na Casa Américo já havia uma preocupação com a sustentabilidade e com a diversidade, afiança o produtor. Isso percebe-se, por exemplo, pelo bosquete mantido e cuidado mesmo ao lado da tal parcela de Touriga ou pelos enrelvamentos espontâneos nos corredores entre os bardos. E como dão cabo das ervas daninhas junto às videiras? As caldeiras estão limpas. Alguns anos obrigam a fazer “uma aplicação de herbicida”, admite Luís Sousa, mas a casa tenta primeiro deitar mão a outras técnicas, como o corte de ervas com o intercepas, “uma alfaia que permite trabalhar entre videiras”, ou o “amontoado” — literalmente amontoar terra por cima das plantas, para impedir que cresçam. “Como diziam os antigos, para abafar a erva que lá está”, interrompe o enólogo consultor Pedro Pereira.

Resíduos mínimos

Qual é, então, a principal premissa do resíduo zero? E em que difere esta certificação de outros modos de produção? Apesar do nome, o resíduo zero permite “alguns fitofármacos”, mas exige que as análises finais, de uvas e vinho, revelem resíduos mínimos dessas substâncias. Para percebermos melhor, perguntámos pela utilização de cobre, substância usada na produção biológica em substituição precisamente de produtos agro-químicos no controlo do míldio e o oídio, as duas doenças fúngicas da vinha que mais afligem os produtores, mas que, para ser eficaz, obriga a uma utilização mais frequente, com a agravante que não, uma vez no solo, fica no solo. Não se degrada.

No resíduo zero, as substâncias activas (cobre incluído) determinadas pelas análises finais têm de ficar abaixo de 0,01 partes por milhão (ppm) — no caso das uvas, isso quer dizer que eventuais resíduos devem estar abaixo de 0,01 mg/kg, explica Luís Sousa. “Estamos a falar de 500 gramas (de cobre) por ano, se tanto. Faço uma a duas aplicações de adubos à base de cobre.” De facto, no biológico, a União Europeia restringe o uso de cobre a um máximo de 28 quilos por hectare em sete anos, o equivalente a uma utilização média de quatro quilos por ano para a mesma área.

Para além da significativa redução no uso de pesticidas de síntese química, o resíduo pede “mobilizações mínimas ou não mobilização” do solo, “zonas para abrigo de pássaros” e um circuito que permita aproveitar e armazenar as águas da propriedade agrícola (pluviais, de poços, etc.) para regar as culturas, exemplifica Luís. “Aqui todas as águas da quinta são encaminhadas para reservatórios, para poderem ser utilizadas na rega. Temos instalação de rega em algumas parcelas, mas por enquanto não a estamos a utilizar.”

Estas são preocupações que também vemos noutros modos de produção, nomeadamente na agricultura regenerativa e na biodinâmica. As sobreposições de requisitos entre diferentes certificações levam a acreditar numa verdade: uma visão integrada e holística da cultura trará sempre mais vantagens para a mesma.

Não usam os preparados nem caldas, como fazem os da biodinâmica, mas usam “extracto de cavalinha para o míldio”. E nota o responsável: “Na região do Dão, o grande problema é o míldio, não é o oídio. Por essa razão, sempre utilizámos menos enxofre, porque há menos tendência para aparecer oídio. Também utilizamos sílica, por exemplo. São produtos de resíduo zero.”

“Áreas como este bosquete acabam por ter várias funções, não é? Preservam um bocadinho mais a humidade, funcionam como corta-fogos também e são abrigo para (insectos e outros) auxiliares. E o Dão sempre foi caracterizado pelas pequenas parcelas, parcelas que acabavam sempre por ter um tipo de separação quase natural. O pinhal, a oliveira, o castanheiro em alguns sítios. Havia sempre, assim, esta mistura. Aqui há uns anos dizia-se que quem não tivesse dimensão não vingaria, porque os custos eram muito elevados. Hoje em dia, ainda se fala de dimensão, mas quando nós falamos de terroir, no fundo falamos disto. É mais do que a própria vinha”, explica o consultor Pedro Pereira, conhecedor da sub-região da serra da Estrela, onde assina outros vinhos, nomeadamente os da Adega Cooperativa de Vila Nova de Tazem, ali bem perto.

Na adega, o resíduo zero impõe alguma coisa? “Não há assim uma limitação. Mas a nossa ideia é que no futuro este vinho resíduo zero tenha a menor intervenção possível”, nota Pedro Pereira, para quem o próximo passo é a utilização de leveduras indígenas (presentes na própria vinha) no arranque da fermentação, neste caso, espontânea. Quer fazê-lo já na vindima de 2025. Depois disso, e de estar consolidada a experiência nos 14 hectares de vinha actualmente em resíduo zero, a equipa equaciona a hipótese de alargar “o santuário”, como lhe chama o consultor, a toda a quinta.

O tinto Vinha de Púcaros Touriga Nacional Resíduo Zero 2023 é “o primeiro vinho português sem resíduos de pesticidas”, reclama a Casa Américo Adriano Miranda
A vinha de Touriga Nacional que a Casa Américo certificou como "resíduo zero", junto da espanhola Zerya Adriano Miranda

Luís e Pedro estão há mais de uma década na Casa Américo. Juntos, plantaram um “campo de ensaio” (para o viticólogo, “campo de ensaio”; para o enólogo, “vinha experimental”) com 15 castas autóctones do Dão, replicando o material genético que encontraram nas vinhas velhas. Desse estudo, já saiu um vinho branco de maceração pelicular feito de Barcelo e Bical, um rosé de Baga (novidade absoluta; ver notas de prova) e, recentemente, a decisão de plantar mais um hectare de Barcelo.

O estudo da próxima década será também dedicado aos espumantes, depois da aquisição recente de uma vinha em Paramos da Beira, onde a Casa Américo está “a replantar castas para a produção de espumante, com a ajuda de especialistas da Bairrada”, disse, ao PÚBLICO, o director-geral da Seacampo. Segundo David Lopes, a Quinta Estrela Aldebaran é um projecto que “ainda demorará uns dez anos” a ver garrafa.

A Casa Américo tem no Dão 150 hectares de vinha, espalhados por várias propriedades; nesta vê-se ao fundo a serra da Estrela que tanto influencia os vinhos da sub-região homónima Adriano Miranda

A família Seabra tem feito crescer o seu projecto nos vinhos — 40 mil garrafas por ano — porque também tem vindo a adquirir vinha, nuns casos pequenas parcelas a quem já não quer ou pode trabalhar a tempo, noutros património maior, como aconteceu com a aquisição faseada de vinhas ao grupo Bacalhôa (em breve, voltarão ao mercado os vinhos Quinta da Garrida) e, antes, com a compra da Adega Cooperativa de São Paio, quando esta se encontrava falida.

Nome Casa Américo Baga Rosé 2023

Produtor Casa Américo;

Castas Baga

Região Dão

Grau alcoólico 12,5%

Preço (euros) 30,80

Pontuação 92

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Um rosé de Baga do sopé da serra da Estrela? Sim. Ao que parece, em Gouveia, concretamente na zona de Vila Nova de Tazem, sempre houve muita Baga. Então, porque não? Este fermentou e estagiou em barrica usada de “carvalho de leste” (50% do lote) e é um rosado de nariz contido, que não atrai pela exuberância. O nariz não dá pelo uso da madeira, mas ela foi primorosa a arredondar a adstringência da Baga. Vinho com bela acidez, austero, mineral (granítico), e que sai de uma vinha experimental plantada há 7 anos, onde o produtor pôs 15 castas autóctones.

Nome Casa Américo Branco Pelicular 2021

Produtor Casa Américo;

Castas Bical e Barcelo

Região Dão

Grau alcoólico 12,50%

Preço (euros) 28,70

Pontuação 92

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova É o primeiro branco de maceração pelicular feito do Barcelo da vinha experimental da Casa Américo e uma edição limitada — para já, mas que pode ver reedição na colheita de 2023, a ver. O mosto de Bical (do mesmo campo de ensaios) fermentou até ao fim com as películas das uvas, o Barcelo esteve em contacto pelicular sensivelmente até meio da fermentação. A cor citrina não denuncia esse processo. O enólogo conseguiu-a com “pouca movimentação e temperatura baixa”. Mineral e com um lado de folha seca no nariz, é um branco elegante e ligeiramente estruturado, de tanino envergonhado, mas presente. Será boa companhia para queijos da Estrela.

Nome Vinha de Púcaros Touriga Nacional Resíduo Zero 2023

Produtor Casa Américo;

Castas Touriga Nacional

Região Dão

Grau alcoólico 14,5%

Preço (euros) 18,80

Pontuação 90

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova É o primeiro vinho português certificado como “resíduo zero”, reclama o produtor. E a primeira impressão que nos passa é a da sua pureza aromática, com fruta silvestre primária (só viu inox e cimento), o lado fresco da humidade que rodeia a vinha que lhe dá origem e o lado arbustivo da casta — não vai tanto “à violeta das tourigas de Gouveia”, confirma o enólogo Pedro Pereira. Na boca, a fruta surge mais compotada e o tanino é vivo, arestado, mas nota-se que foi orientado pelo cuidado da enologia na extração. O álcool foi o que a vinha deu, como só estão certificados 14 hectares não havia como ia buscar componentes para lote a outras vinhas. É um vinho jovem, que pede tempo de garrafa, mas do qual já extraímos algum prazer agora.

Nome Casa Américo Tinto 625 mts 2019

Produtor Casa Américo;

Castas Várias castas (field blend)

Região Dão

Grau alcoólico 14%

Preço (euros) 28,50

Pontuação 95

Autor Ana Isabel Pereira

Notas de prova Este tinto nasce na melhor parcela do produtor, de uma vinha na Quinta do Aral que fica a 625 metros de altitude e cuja parte mais velha tem 80 anos. Field blend, portanto, maioritariamente de tintas e “com as castas todas do Dão” — Camarate, Tinto Cão, Baga, Negro Mouro, Tinta Pinheira... —, mas onde o Jaen predomina. Na adega, 60% do lote estagiou em inox e 40% em barrica usada, durante 14 meses. O resultado final cheira a bosque na primavera — não é demasiadamente fresco, nem é quente —, é mineral e fresco. Na boca, tem uma belíssima acidez e um tanino que nos agarra pela elegância. Dos vinhos que nos ficam na memória.