Um aumento de 1,5 graus Celsius da temperatura média global, a meta do Acordo de Paris, pode ter já consequências dramáticas para as camadas de gelo do mundo. Com a subida do nível das águas, o mar pode engolir cidades, colocando em risco milhões de pessoas que vivem nas zonas costeiras. Por outro lado, tendo em conta o ritmo actual do degelo, os glaciares levarão séculos a recuperar, mesmo que o aquecimento global seja invertido. Portugal está no mapa de risco com um aumento do nível do mar de apenas um metro.
A aceleração do degelo no nosso planeta tem sido uma das principais preocupações dos cientistas quando falamos dos dados que temos hoje sobre a crise climática e do futuro que prevemos. Esta segunda-feira, dois artigos científicos publicados em diferentes revistas abordam o mesmo tema, alertando para as dramáticas consequências de um aumento de 1,5 graus Celsius da temperatura média global, a meta do Acordo de Paris.
“Actualmente, cerca de 230 milhões de pessoas vivem a menos de um metro do nível do mar e o derretimento do gelo representa uma ameaça existencial para essas comunidades, incluindo várias nações de baixa altitude”, referem os autores de um artigo publicado na revista Communications Earth and Environment, do mesmo grupo da Nature.
Citado no comunicado de imprensa, Chris Stokes, do Departamento de Geografia da Universidade de Durham, no Reino Unido, afirma: “há cada vez mais provas de que 1,5 graus Celsius é um valor demasiado elevado para as camadas de gelo da Gronelândia e da Antárctida. Há muito que sabemos que é inevitável alguma subida do nível do mar nas próximas décadas, ou séculos, mas as observações recentes da perda de camadas de gelo são alarmantes, mesmo nas condições climáticas actuais”.
Portugal em área de maior risco
Portugal está obviamente numa das áreas de maior risco e, sobre isso, em resposta ao Azul, Chris Stokes remete-nos para o mapa que mostra "as áreas terrestres submersas com um metro de subida do nível do mar do manto de gelo Antárctico". Ali está, marcada a vermelho, a Reserva Natural do Estuário do Tejo e o Algarve, na zona do Parque Natural da Ria Formosa e Olhão.
Apesar de usar a Antárctica como exemplo, o cientista lembra que "actualmente, estamos a caminho de atingir cerca de 2,5 a 2,7 graus Celsius até ao final do século, o que está próximo do cenário intermédio do IPCC, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (SSP2-4,5)".
"As projecções do IPCC para a subida do nível do mar em 2100 para este cenário são de 44 cm a 76 centímetros, mas não excluem a possibilidade de exceder um metro em 2100 num cenário de emissões elevadas. Assim, penso que um metro até 2100 é certamente plausível a partir de todas as fontes", explica Chris Stokes.
Em Março de 2022, num outro artigo que assinou, Chris Stokes lançava o mesmo alerta defendendo que, apesar de tudo, o gelo da Antárctida ainda tem salvação se limitarmos a subida de temperaturas.
Gelo perdido quadruplicou
Limitar o aumento da temperatura global a 1,5 graus Celsius, no âmbito do Acordo de Paris, não será o suficiente para salvar as camadas de gelo do mundo, defende a equipa envolvida neste estudo, indicando que a meta deve ser mais próxima de 1 grau Celsius para evitar perdas significativas das camadas de gelo polares e impedir uma maior aceleração do aumento do nível do mar. Ou seja, um aumento inferior ao que actualmente estamos a viver.
Segundo a nota de imprensa, a equipa analisou uma grande quantidade de provas para examinar o efeito que o objectivo de 1,5 graus Celsius teria nas camadas de gelo da Gronelândia e da Antárctida, que, em conjunto, armazenam gelo suficiente para aumentar o nível global do mar em quase 65 metros.
Em resposta ao Azul, Chris Stokes resume: “a nossa principal mensagem para os decisores políticos é que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para tentar limitar o aquecimento a 1,5 graus Celsius, mas o melhor cenário possível é que a subida do nível do mar seja lenta e constante (por exemplo, menor do 10 milímetros por ano)”.
Sabemos que a meta do aumento de 1,5 graus Celsius parece cada vez mais impossível a cada ano, a cada mês mais quente de que há registo que passa. Porém, não podemos desistir desse objectivo, asseguram os cientistas.
Pouco optimista ou, se preferirem, realista, o cientista reconhece também que, “no entanto, é muito improvável que o aumento do nível do mar seja lento”.” Os lençóis de gelo estão a perder massa com um aquecimento de +1,2 graus Celsius e a subida do nível do mar está a acelerar para taxas às quais seria muito difícil adaptarmo-nos (acima dos 10 milímetros por ano) durante a vida de muitos dos nossos jovens”.
Qual é o limite seguro?
Assim, nota o cientista, “a conclusão lógica é que, para abrandar a subida do nível do mar a partir dos lençóis de gelo para um nível controlável, é necessário um objectivo de temperatura a longo prazo próximo de 1 grau Celsius, ou possivelmente inferior, mas é necessária mais investigação para descobrir exactamente qual é o limite seguro para os lençóis de gelo”. De qualquer modo, Chris Stokes conclui, “quanto mais cedo abrandarmos e pararmos o aquecimento, mais fácil será regressar a níveis seguros”.
“A massa de gelo perdida destes mantos de gelo quadruplicou desde a década de 1990 e, actualmente, estão a perder cerca de 370 mil milhões de toneladas de gelo por ano, com níveis de aquecimento actuais de cerca de 1,2 graus Celsius acima das temperaturas pré-industriais, de acordo com o último relatório do IPCC”, lembram os autores do artigo.
Os investigadores sublinham que “um aquecimento superior a 1,5 graus Celsius geraria provavelmente uma subida do nível do mar de vários metros nos próximos séculos, à medida que as camadas de gelo da Gronelândia e da Antárctida derretem em resposta ao aquecimento das temperaturas do ar e dos oceanos”.
Não é este o futuro que queremos. É inevitável? “Para evitar esse cenário seria necessário que a temperatura média global fosse mais baixa do que a actual, o que, segundo os investigadores, se situa provavelmente a cerca de 1 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais, ou possivelmente ainda mais baixa”, respondem os autores do trabalho.
Se não conseguimos manter os termómetros abaixo de um aumento de 1,5 graus Celsius da temperatura média, como faremos para baixar ainda mais a febre deste planeta? “Não estamos necessariamente a dizer que tudo está perdido a 1,5 graus Celsius, mas estamos a dizer que cada fracção de grau é realmente importante para os lençóis de gelo. Quanto mais cedo conseguirmos travar o aquecimento, melhor, porque isso torna muito mais fácil regressar a níveis mais seguros mais tarde”, insiste Chris Stokes, citado na nota de imprensa.
230 milhões de pessoas a menos de um metro do nível do mar
Resta resgatar esperança aos registos do passado. “Por outras palavras, e talvez seja um motivo de esperança, basta recuarmos ao início da década de 1990 para encontrarmos uma altura em que as camadas de gelo pareciam muito mais saudáveis. Nessa altura, as temperaturas globais eram cerca de 1 grau Celsius superiores às da era pré-industrial e as concentrações de dióxido de carbono eram de 350 partes por milhão, o que outros sugeriram ser um limite muito mais seguro para o planeta Terra”, lembra o investigador da Universidade de Druham.
Porém, acrescenta ao Azul: “Curiosamente, a temperatura média global de 1 grau Celsius foi sugerida como um limite seguro na década de 1990, mas foi completamente ignorada”. Actualmente, as concentrações de dióxido de carbono são de cerca de 424 partes por milhão e continuam a aumentar.
A solução é óbvia, sobejamente conhecida e apregoada, mas não é simples. Temos de reduzir as emissões e arrefecer o planeta para manter as camadas de gelo no mundo e evitar uma trágica subida do nível do mar. Esta emergência não é novidade para ninguém. Mas o alarme dos cientistas com o acelerado ritmo do degelo é cada vez mais sonoro. Sobretudo quando percebemos também que os glaciares levarão séculos a recuperar, mesmo que o aquecimento global seja invertido (ver caixa).
Se continuarmos a assobiar para o lado será muito difícil e muito mais dispendiosa a adaptação à subida do nível do mar, causando grandes perdas e danos às populações costeiras e insulares e levando à deslocação generalizada de centenas de milhões de pessoas. “Os decisores políticos e os governos têm de estar mais conscientes dos efeitos que uma subida de 1,5 graus Celsius nas temperaturas poderá ter nos mantos de gelo e no nível do mar”, afirmam os investigadores.
Actualmente, sublinham, cerca de 230 milhões de pessoas vivem a menos de um metro do nível do mar e o derretimento do gelo representa uma ameaça existencial para essas comunidades, incluindo várias nações de baixa altitude.
Perante o que já está a acontecer, os investigadores acrescentam que é urgente continuar a trabalhar para determinar com maior precisão um objectivo de temperatura “seguro” para evitar a rápida subida do nível do mar devido à fusão das camadas de gelo, alertam os autores da investigação, que também incluiu investigadores das universidades de Bristol, no Reino Unido, e de Wisconsin-Madison e Massachusetts Amherst, ambas nos EUA.
À espera da próxima idade do gelo?
A equipa de investigação combinou provas de períodos quentes passados, semelhantes ou ligeiramente mais quentes do que o actual, e medições da quantidade de gelo que se está a perder com o actual nível de aquecimento, juntamente com projecções da quantidade de gelo que se perderia com diferentes níveis de aquecimento ao longo dos próximos séculos.
Eis as conclusões: “as provas recuperadas de períodos quentes passados sugerem que se podem esperar vários metros de subida do nível do mar - ou mais - quando a temperatura média global atinge um valor igual ou superior a 1,5 graus Celsius", responde Andrea Dutton, da Universidade de Wisconsin-Madison, co-autora do estudo.
“Além disso, estas provas sugerem também que quanto mais tempo essas temperaturas quentes se mantiverem, maior será o impacto na fusão do gelo e na consequente subida do nível do mar”, acrescenta Andrea Dutton.
Jonathan Bamber, professor na Universidade de Bristol, mede há várias décadas as alterações nas camadas de gelo e também participou neste estudo. “As recentes observações por satélite da perda de massa das camadas de gelo foram um enorme alerta para toda a comunidade científica e política que trabalha no domínio da subida do nível do mar e dos seus impactos. Os modelos simplesmente não mostraram o tipo de respostas que testemunhámos nas observações das últimas três décadas”, avisa, citado no comunicado.
Em declarações ao Azul numa resposta por e-mail, Chris Stokes revela que a equipa vai continuar a monitorizar as camadas de gelo da Gronelândia e da Antárctida para medir a massa perdida todos os anos.
“Actualmente, estão a perder cerca de 400 mil milhões de toneladas de gelo por ano, o que aumenta o nível do mar em mais de 1 milímetro. Tal como explicamos no documento, penso também que precisamos de efectuar mais simulações em computador para tentar identificar qual é o limite de temperatura “seguro” para as camadas de gelo. Será 1 grau Celsius ou 0,8 ou 0,5?”, acrescenta, recordando que a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas prevê revisões regulares do objectivo de temperatura a longo prazo que evitará impactos perigosos das alterações climáticas.
“As conclusões do nosso trabalho e de estudos semelhantes devem ser tidas em conta em quaisquer revisões futuras”, reclama o investigador.
Por fim, Rob DeConto, da Universidade de Massachusetts Amherst, especialista em simulações computorizadas da Antárctida que também assina o artigo, acrescenta: “é importante sublinhar que estas alterações aceleradas nos mantos de gelo e as suas contribuições para o nível do mar devem ser consideradas permanentes em escalas temporais multigeracionais”.
Por outras palavras, “mesmo que a Terra regresse à sua temperatura pré-industrial, serão necessárias centenas ou talvez milhares de anos para que as camadas de gelo recuperem”, diz Rob DeConto, acrescentando que “se a perda de gelo for demasiado grande, algumas destas camadas de gelo poderão não recuperar até que a Terra entre na próxima idade do gelo”.