Leão XIV: desejar a paz, dignificar o trabalho e consolidar a sinodalidade | Comentário - Na sombra de Francisco

Ser Papa depois de Francisco não é fácil. Suceder ao homem que tocou profundamente os corações de católicos e não católicos, que despertou atenções e se tornou o líder de referência num mundo em que as certezas e as instituições se desagregam, é desafio de monta. Mas Leão XIV parece saber muito bem como responder ao fardo que os cardeais lhe puseram sobre os ombros. Consolidar a sinodalidade dentro da Igreja, propor pontes e insistir no diálogo para construir a paz e promover a dignidade do trabalho parecem ser as traves-mestras do pontificado que agora começa. Mais do que continuidade ou moderação, este pontificado abre-se sobre o signo da consolidação. E será, tudo o indica, um longo pontificado.

As expectativas são imensas. Qualquer gesto que faça será visto à imagem de tantos e tão fortes que Francisco criou. A sua palavra será lida à luz da torrente de palavras belas, simples e tocantes que Francisco inscreveu na memória de todos. Os passos que andar serão sempre sob a sombra de um Papa que foi até ao fim do mundo, privilegiou as viagens às periferias e trouxe estas para o centro. Será preciso muito carácter — uma profunda espiritualidade, dirão os católicos — para não querer imitar o seu predecessor e ser, tranquilamente, ele próprio.

Ser Papa num momento em que conflitos graves e guerras assassinas atravessam o mundo e em que as sociedades onde antes imperava a lei são capturadas às ordens do mais forte. Sentar-se na cadeira de Pedro quando a vida no planeta está ameaçada e o grito dos pobres se ouve em toda a parte. Ser bispo de Roma e presidir à unidade de uma Igreja Católica cada vez mais plurifacetada por querer viver a sua missão a partir das culturas, das relações e das questões de cada local ou grupo onde se encontra. Tudo isto são reptos de enormes dimensões. Ao conceder toda a centralidade à paz, ao referir a sinodalidade e ao escolher o nome de Leão XIV, o cardeal Prevost indicou com clareza, e desde o primeiro momento em que foi eleito Papa, a serenidade que o habita e o movimento que o inspira.

Leão XIII foi o Papa que lançou as bases da doutrina social da Igreja, o homem que quis trazer a Igreja Católica ao encontro das “coisas novas” que estavam a acontecer na sociedade, na política e na economia. “Os progressos incessantes da indústria” e a concentração “da riqueza nas mãos de um pequeno número, ao lado da indigência da multidão” eram para Leão XIII, em 1891, suficientes para reconhecer a existência da “questão operária” a que a Igreja devia “dar a melhor solução possível.”

Não foi ele quem cunhou a expressão, mas foi ele quem percebeu que se vivia naquele virar de século uma “mudança de época”. Hoje, o trabalho à distância, a Inteligência Artificial, a globalização, a emergência de novos hábitos e costumes, as mutações culturais e as redes sociais estão a produzir outra “mudança de época”.

Mais uma vez — outra vez! — é o trabalho, são as condições de trabalho que se degradam e corroem a possibilidade de uma vida com sentido. O filme On Falling da portuguesa Laura Carreira ilustra, melhor do que mil palavras, como o trabalho desqualificado sufoca o quotidiano, desertifica as relações e mata a vida, a vida toda. E é esse tipo de “trabalho” — repetitivo, mecânico, separado, sem futuro nem progressão à vista — que se impõe como condenação a milhões de pessoas sobreexploradas em todo o mundo. Se Francisco chamou a atenção para a “economia que mata”, Leão XIV, sendo fiel ao nome que escolheu, falar-nos-á do “trabalho que mata”.

Como favorecer a paz?

Quem foi o Papa mais importante: João XXIII que convocou o Concílio Vaticano II, ou Paulo VI que o levou até ao fim e o concretizou? A pergunta é obviamente obtusa: um sem o outro carece de sentido. Mas ao ver e ouvir Leão XIV tomar a palavra na loggia da Basílica de São Pedro, a comparação com aquele junho de 1963 em que Paulo VI foi eleito Papa para suceder a João XIII impõe-se e sugere um prognóstico: este é o Papa da consolidação dos caminhos abertos pelo seu antecessor.

O sorriso, a bonomia e a confiança esperançosa de João XXII foram o pano de fundo da “abertura das janelas para deixar entrar o ar” que faltava à Igreja e para as tarefas de aggiornamento (atualização) a que ele se propôs. O ar distante, frio e intelectual de Paulo VI surgia como uma pedra colocada em cima de tais intenções. Temeu-se por um fim abrupto do Concílio. Nada disso aconteceu. Foi tudo ao contrário.

A firme condução dos assuntos internos e a crescente intervenção nas questões candentes da atualidade levadas a cabo por Paulo VI mostraram a sua convicção quanto à imperiosa necessidade de abrir a Igreja às realidades da sociedade de então e ao serviço da humanidade. Também Leão XIV surge como um homem muito diferente do seu antecessor. Não como a outra face da mesma moeda, mas como uma outra moeda cunhada em lugar diferente. Verdade na aparência, engano no que importa.

Uma mulher reza na Catedral de Nossa Senhora dos Anjos em Los Angeles, Califórnia, a 13 de Março de 2013, logo depois do anúncio da eleição do Papa Francisco Lucy Nicholson/Reuters

Robert Prevost sabe que é diferente de Bergoglio. E assume-o sem o esconder. Não vimos que sapatos calçava quando apareceu à multidão (Francisco recusou os sapatos vermelhos), mas vimo-lo paramentado com os mantos purpúreos que Francisco recusou. Ficámos a saber: este homem não encenará ser um Francisco 2.0, nem está preocupado em o imitar. Mas pelo que escolheu dizer na primeira vez que em público tomou a palavra enquanto Papa percebemos o apreço pelo que Francisco significou e o sobressalto que transporta diante deste mundo de tantas guerras que ameaçam transformá-lo num mundo de guerras, num planeta em guerra.

“Paz!” — a palavra nove vezes repetida por Leão XIV na sua primeira alocução pública define a preocupação central de um pontificado. Não uma paz baseada no terror da corrida ao armamento, mas uma paz “desarmada” que se deseja “desarmante”, construída pacientemente através do diálogo e da criação de pontes.

No Vaticano não vamos encontrar um homem interessado em impor a sua visão de quem, neste e naquele conflito, está certo ou errado. Não. Este é o Papa que procurará criar espaço para que o forte escute o fraco, para que o espezinhado olhe nos olhos o opressor, para que os inimigos se encontrem. Estratégia muito arriscada, sem frutos evidentes à vista. Mas é nela que Leão XIV aposta.

Que viram nele os cardeais?

Por mais que se procure descortinar na história e no perfil de Robert Prevost o modo como conduzirá a Igreja e que papel irá ter no contexto internacional, tal antecipação não resulta evidente. Com maior facilidade, pode-se entender o que nele viram os cardeais que o elegeram: a sua larga experiência de pastor num país relativamente periférico; a sua predisposição à audição e escuta de todos e, ao mesmo tempo o jeito de enquadrar no contexto da doutrina e da tradição católica a abertura protagonizada pelo seu antecessor; a discrição do seu modo de ser, visto como uma alternativa cedível ao poder da palavra e dos gestos que deram tanta popularidade a Francisco e, claro, o facto de ser norte-americano…, mas não muito norte-americano.

Argumento de peso para a sua escolha terá sido o seu envolvimento pastoral de mais de duas décadas no Peru, um país em que a Igreja Católica tem uma longa tradição de procura de inculturação da fé nas vigorosas culturas indígenas e se confronta com a pobreza de grande parte da população. Tal como o conhecimento de múltiplas situações vividas nos muitos países que a sua função de prior geral da Ordem de Santo Agostinho o levou a visitar. Para os cardeais preocupados em preservar a unidade da Igreja num tempo em que a experiência cristã, à medida que se enraíza em contextos muito diferentes, se torna cada vez mais diversa, este passado de Prevost impôs-se.

O Papa Leão XIV caminha por entre os cardeais que o elegeram na Capela Sistina, no Vaticano Vatican Media/Francesco Sforza ­Handout via REUTERS

Por outro lado, num colégio cardinalício composto de contestatários de Francisco e de partidários deste, de cardeais temerosos quanto às consequências dos passos dados e de outros desejosos de mudanças mais rápidas, um seguidor do falecido Papa mais propenso a uma reflexão e ao uso de uma linguagem baseadas em conceitos mais tradicionais, terá surgido como o homem certo para consolidar o caminho recentemente percorrido.

Gerir a sucessão de uma Papa carismático, magnético, muitíssimo querido e imensamente popular era outra questão difícil que o conclave enfrentava. Depois de Francisco, que perfil poderia ser credível, aceite e respeitado, de tal forma que a sua palavra fosse escutada e ganhasse eficácia? Um “Francisco-bis” seria a pior das hipóteses. Um burocrata saído dos corredores do Vaticano arriscava o desastre. Um pastor discreto, não enfeudado a qualquer grupo identificável, mas de profunda espiritualidade (agostinho), conhecedor do mundo e conhecido pelo seu caráter persistente, defensor da autoridade hierárquica, embora fundando-a na sua capacidade de ser serviço aos demais, seria o candidato ideal.

Escolhendo Prevost, os cardeais levaram ainda a borla de colocar um norte-americano na cadeira de São Pedro, o que, de um modo ou de outro favorecerá a reaproximação desta sociedade com Roma, superando o fosso que entre as duas se foi cavando ao longo do último pontificado.

Questões em aberto

“O Espírito Santo (…) está a empurrar-nos para uma renovação e, portanto, somos chamados a viver uma nova atitude”, disse há um ano, em maio de 2023, à Vatican News, o cardeal Prevost numa entrevista em que referiu que “os bispos também precisam de escutar e de pedir conselhos aos que estão à sua volta” e que a sua nomeação deve decorrer de um processo em que será preciso “ouvir um pouco mais os religiosos e os leigos”. Para bom entendedor bastariam estas afirmações para se saber quanto o cardeal estava próximo da Igreja sinodal sonhada por Francisco.

Já sobre “as questões fraturantes” que os media tanto valorizam quando focam a sua atenção sobre a Igreja Católica, tudo leva a crer que Leão XIV promoverá uma evolução mais lenta. Na verdade, ele não só defendeu a inclusão de três mulheres em lugares importantes do Dicastério para os Bispos a que presidia, como publicamente defendeu que “a sua opinião introduz outra perspetiva e torna-se um contributo importante”. Porém, abrir mais espaço na Igreja para a participação e para o contributo feminino na condução da vida das comunidades e nas decisões a tomar, não é sinónimo de abertura à ordenação de mulheres. De igual modo, não se espera grande revolução na doutrina católica sobre a sexualidade, o casamento e a família.

Guglielmo Mangiapane/Reuters

A especialidade de Leão XIV é o direito canónico (a lei interna da Igreja). Esse mesmo sobre a revisão do qual o último Sínodo colocou pressão, instando a que fosse alterado para deixar de impedir o que naquela assembleia foi tido como mudanças desejáveis. Resistirá o novo Papa a alterá-lo, ou, pelo contrário, os seus conhecimentos da matéria já o convenceram de que outras terão de ser as regras internas que devem presidir à Igreja Católica do século XXI?

Sobre estas e outras questões boa parte do que será este pontificado do ponto de vista de “portas adentro” será desvendado quando Leão XIV decidir o que fará da dezena de grupos especializados que o seu antecessor criou para debaterem alguns dos pontos mais críticos surgidos durante o processo de consulta o Sínodo sobre a sinodalidade. Os relatórios de tais grupos deveriam ser entregues até ao final do próximo verão. Será que Leão XIV vai deixar correr o processo até ao seu previsto termo? Dará importância a tais documentos? E relançará ele o processo sinodal, mantendo a Assembleia Eclesial que Francisco convocou para 2028, como lugar de revisão do avanço da participação e responsabilização acrescidas de todos os batizados na vida da Igreja?

Conforme responder a estas interrogações, assim se irá percebendo que pontificado desenha Leão XIV. Por enquanto o que paira sobre ele é a alegria feliz, quase infantil, dos sorrisos dos cardeais que o elegeram captados nas varandas da Basílica de São Pedro pelas câmaras de televisão.