"Gostaria que houvesse uma continuidade muito forte com o perfil do Papa Francisco"

João Manuel Duque, professor catedrático da Faculdade de Teologia da Universidade Católica, defende a eleição de um Papa na linha de continuidade de Francisco.

"Gostaria que houvesse uma continuidade muito forte com o perfil do Papa Francisco", diz o docente em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia.

Antecipando o Conclave, com início marcado para 7 de maio, João Manuel Duque admite a eleição de “alguém com impacto nas estruturas da Igreja, a eleição de um cardeal mais jovem”, mas alguém que se identifique com o Papa Francisco. Duque não avança com nenhum favorito, mas revela que “há alguns que não gostaria que fossem” eleitos.

Duque sugere a eleição de alguém com um forte carisma, porque "caso contrário o papel de liderança da Igreja Católica poderia desaparecer". No atual contexto internacional, marcado por guerras e tensões políticas, João Duque admite que o Conclave acabe por eleger alguém "mais ligado à diplomacia".

O professor da Católica está convencido de que o processo sinodal “é irreversível”, até porque não acredita que “a figura única do Papa possa neste momento interromper esse processo”.

"O Papa Francisco, como bom estratega encarregou-se de deixar estruturas suficientes e até indicações suficientes para que o processo siga por si, mesmo que o Papa possa não ser extraordinariamente simpatizante dele."

"Os últimos três Papas desempenharam uma função importante do ponto de vista social, do ponto de vista global, até do ponto de vista político internacional"

João Manuel Duque considera que a “questão do abuso de menores está mais do que assumida” e admite que ainda há caminho por fazer “ao nível da participação da mulher na Igreja”.

“Esse é um caminho que está a ser muito intenso neste momento e que, em certa medida, está a marcar o próprio processo sinodal”, embora ele "não se reduza a isso”.

“Será, certamente, um campo a desenvolver” porque "se o perfil do Papa for um perfil que não tenha esse assunto muito no coração, ele poderá, de facto, parar bastante”.

Em vésperas do início do Conclave que vai eleger um novo Papa, João Manuel Duque afirma, por outro lado, que os temas da agenda do Papa Francisco vão continuar a desafiar a Igreja, pois “são temas desafiantes para o conjunto da humanidade”.

"Terá de ser um perfil (o do próximo Papa), antes de mais, suficientemente carismático e isso, certamente, reduz bastante os candidatos"

A partir do dia 7 de maio, 53 cardeais europeus, 37 americanos, 16 são da América do Norte, 4 da América Central e 17 da América do Sul, mais 23 asiáticos, 18 africanos e 4 da Oceania, reúnem-se em conclave. Podemos dizer, professor João Duque, que estamos perante o mais imprevisível conclave da história, como já alguns prognosticaram?

Num certo sentido sim, tendo em conta, de facto, a variedade da proveniência dos cardeais. Acho que sim. Não sei se, do ponto de vista dos eventuais elegíveis, será assim tão imprevisível.

E prevê um Conclave mais longo por causa desse desconhecimento entre os cardeais?

Fracamente, não sei. Acho que há sempre surpresas, como é evidente, mas, dentro das previsões dos que possam ser elegíveis, eles são suficientemente conhecidos e são suficientemente conhecidos por todos. Portanto, não sei, nem sequer sei se a variedade de perspetivas neste Conclave é superior à variedade de perspetivas em Conclaves anteriores. Desconfio que até talvez não seja.

Teremos, por certo, mais países representados...

Isso sim.

E acredita que é importante a geografia de proveniência do próximo Papa? Poderemos ter o primeiro da Ásia ou o primeiro da África?

Poderia ser significativo. Eu penso que a abertura que se deu com o Papa Francisco, de não ser um Papa europeu, sobretudo um Papa do sistema, num certo sentido, que já antes tinha acontecido na rutura de um Papa italiano ou na transição de um Papa italiano, mais do sistema, com João Paulo II, é algo significativo. Não sei se neste momento é questão essencial. Francamente, parece-me que no rumo que a Igreja tomou nos últimos tempos e no papel do Papado, no papel da figura do Papa internacionalmente considerado, mesmo para além do âmbito da Igreja, não sei se essa questão é neste momento muito significativa. Pessoalmente, penso que não.

"Não acredito que a figura única de um Papa possa interromper esse processo (sinodal)"

É importante garantir a relevância da Igreja Católica na atualidade. Desse ponto de vista, que perfil é necessário para os tempos de hoje?

Terá de ser um perfil, antes de mais, suficientemente carismático e isso, certamente, reduzirá bastante os candidatos porque, quer queiramos quer não, os últimos três Papas desempenharam uma função importante do ponto de vista social, do ponto de vista global, até do ponto de vista político internacional, muito para além da questão direta do governo da Igreja. Isso é indiscutível e, nesse sentido, diríamos que prevê-se e espera-se que seja um Papa com essa capacidade. Caso contrário, de facto, há um certo papel de liderança da Igreja Católica - do ponto de vista espiritual, do ponto de vista de orientação do conjunto da humanidade, independentemente da pertença à Igreja ou não pertença à Igreja, que é uma tarefa que tem sido bastante colada à figura do Papa - que poderia desaparecer.

A maioria dos cardeais foi já escolhida por Francisco. É possível prever-se uma decisão de continuidade?

Tendencialmente, acho que sim. Não quer dizer que se analisarmos caso a caso, tenham todos, em todos os aspetos, proximidade ao Papa Francisco. Acho que ele teve capacidade também de escolher alguma variedade. Agora, é certo que um certo perfil que tradicionalmente se considera como ultraconservador, de facto, não existiu nas escolhas de Francisco. O peso de uma perspetiva nesse sentido (ultraconservador) é diminuto no Conclave atual, penso que sim.

"A justiça não é igual à injustiça, o amor não é igual ao ódio"

Até que ponto o contexto internacional - guerras, tensões políticas - pode condicionar o conclave? Por exemplo, numa entrevista recente à Renascença, um dos biógrafos de Francisco, Austin Ivereight, disse que na escolha do próximo Papa muitos cardeais vão estar preocupados com o colapso da ordem mundial...

Isso pode ser significativo e até atrever-me-ia a dizer que a presença do hemisfério norte pode voltar a ter mais relevância, uma vez que, de facto, a crise forte que estamos a atravessar do ponto de vista político está a afetar, sobretudo, um certo paradigma a que nos habituamos, no hemisfério norte, a ter como seguro. Nesse sentido, não sei se alguém mais ligado à diplomacia do contexto europeu, europeu-norte-americano, europeu mais estendido até a Ásia, mas a Ásia aqui mais do norte, eventualmente não venha a ter um papel importante nesta dinâmica, tanto quanto possa ter, do ponto de vista diplomático e orientador espiritual. Talvez, talvez neste momento isso seja mais significativo do que o problema do sul, diríamos, do hemisfério sul e das características do hemisfério sul.

Ao longo dos últimos dias, falou-se muito do legado de Francisco e dos desafios que se colocam à Igreja Católica. O Papa Francisco insistiu na defesa de uma Igreja para todos, mas deixou temas em aberto, vários temas em aberto, desde logo, o processo sinodal é ainda um caminho a percorrer. Receia que possa, eventualmente, ser interrompido, ou é um processo irreversível?

Eu, francamente, acredito, estou convencido de que é um processo irreversível. Posso ser demasiado otimista quanto a isso, otimista no sentido em que me identifico, evidentemente, com esse caminho. Também não acredito que a figura única de um Papa possa interromper esse processo. Pode introduzir um certo ritmo que afrouxe o processo sinodal, mas o processo sinodal está introduzido já em estruturas suficientes. Aliás, o Papa Francisco, como bom estratega, encarregou-se de deixar estruturas suficientes e até indicações suficientes para que o processo siga por si, mesmo que o Papa possa não ser extraordinariamente simpatizante dele. Nesse sentido, acredito que, aliás, é o que deverá acontecer relativamente ao futuro: há um perfil diferente de igreja, independentemente das tendências do Papa que aí estiveram. Os efeitos do Conselho Vaticano II são efeitos que resistiram à variedade dos Papas que vieram posteriormente.

"A Igreja está aberta a todos (…) ninguém faz fiscalização à entrada das igrejas para participar na missa"

O conclave é um método clerical contrário à metodologia sinodal?

Relativamente. A eleição do Papa não é por herança, muito menos por herança familiar, portanto, não é uma monarquia hereditária de modo nenhum. Nesse sentido, é uma escolha democrática.

As escolhas democráticas precisam sempre de mecanismos de representação, é impossível ter toda a população envolvida diretamente. E há mecanismos de representação, a representação através do corpo cardinalício, que integra representantes da Igreja Católica de todo o mundo. Nesse sentido, em rigor, é um processo sinodal que já vinha anteriormente, diferente, por exemplo, da escolha dos bispos, que aí, sim, temos de admitir, o processo sinodal é bastante reduzido.

Mas, por exemplo, nas congregações gerais que decorrem até ao Conclave não poderia ser expectável que o processo sinodal motivasse a presença de outros elementos que não só os cardeais?

Isso é um processo que, certamente poderá vir a ter efeitos no próximo Conclave, talvez. Houve aquele episódio, que eu não cheguei a perceber bem se era um episódio de propósito, se foi engano, da colocação da Prefeita da Congregação, ou do Dicastério, nessas congregações. Portanto, pode ser um indício, enfim, de um futuro, de um futuro de preparação do corpo dos cardeais que não inclua exclusivamente os cardeais. Outra questão mais vasta e que também não é previsível é a de que os cardeais não sejam exclusivamente clérigos, algo que é possível do ponto de vista jurídico, mas que não tem sido praticado nos últimos séculos. Mas pode vir, eventualmente, a acontecer, ou seja, que a Prefeita de um Dicastério seja também nomeada cardeal.

"Os comportamentos humanos podem ser perversos e é preciso participar na denúncia desses comportamentos"

De Francisco ficou célebre a expressão "todos, todos, todos", da JMJ Lisboa 2023. Contudo, há uma mensagem central - a mensagem da misericórdia - que também não pode ser descurada. O "todos, todos, todos" não é o mesmo que "tudo, tudo, tudo". Ou é?...

Sim, claramente, eu acho, e o Papa Francisco deixou isso claro logo no regresso, quando lhe colocaram essa questão. Uma questão é a defesa de princípios fundamentais, nomeadamente da dignidade humana, nomeadamente da justiça, o que significa que nem tudo é igual. A justiça não é igual à injustiça, o amor não é igual ao ódio, ou seja, há questões fundamentais e, portanto, as práticas dos sujeitos concretos que vão nesse sentido não significa que tudo vale. Outra questão é a de que, em princípio, de facto, a Igreja está aberta a todos, aliás, há umas circunstâncias muito próprias em que o cerne da própria Igreja, que é a Eucaristia, na prática está aberta a todos, ninguém faz fiscalização à entrada das igrejas para participar na missa. Este é já o princípio de que não há fiscalização de comportamentos, não há fiscalização de origens para essa pertença, isso não significa, que não haja necessidade de deixar claro que os comportamentos humanos podem ser perversos e é preciso participar na denúncia desses comportamentos perversos.

E que respostas espera para questões que permanecem em aberto, como o abuso de menores, a ordenação de mulheres ou a ordenação de homens casados?

Bom, a questão do abuso de menores eu penso que está mais do que assumida. Não quer dizer que esteja mais que resolvida, mas está mais do que assumido, é inquestionável. Já nos Papas anteriores, sobretudo já com Bento XVI, independentemente das tendências, é claro que se trata de uma questão indiscutível no interior da Igreja.

"A questão da participação da mulher na Igreja (…) é um caminho que está a ser muito intenso neste momento e que, em certa medida, está a marcar o próprio processo sinodal"

A resolver, não é?...

Exato, a resolver, e isso significa a alteração de estruturas que, tendencialmente, impossibilitam que isso aconteça. Não quer dizer que impossibilitem sempre plenamente, haverá sempre falhas, mas que tendam a impossibilitar que isso aconteça, e isso é o trabalho que se está a fazer do ponto de vista, por exemplo, da superação do clericalismo e do processo sinodal.

Outra questão, evidentemente que é uma questão séria, a questão da participação da mulher na Igreja, as configurações dessa participação. E esse é um caminho que está a ser muito intenso neste momento e que, em certa medida, está a marcar o próprio processo sinodal. Não quer dizer que o processo sinodal se reduza a isso, mas esse será certamente um campo a desenvolver. Aí, sim, se o perfil do Papa for um perfil que não tenha esse assunto muito no coração, ele poderá, de facto, parar bastante.

Também temos de admitir que com o Papa Francisco houve aberturas nesse sentido, mas também não se avançou assim propriamente muito do ponto de vista estrutural. Mas pode vir um Papa, por exemplo, que seja mais sensível a alterações estruturais nessa componente. Não digo que isso seja a questão essencial do mundo e da Igreja neste momento, mas não deixa de ser uma questão muito significativa.

Ou seja, os temas da agenda do Papa Francisco vão continuar de alguma forma a desafiar a Igreja...

Não há forma de que assim não seja porque, aliás, são temas desafiantes para o conjunto da humanidade. Se assim não for, enfim, de facto é pena que assim não seja, significa que iremos atravessar alguns anos de autorreferência da própria Igreja, tentando colocar de lado alguns temas e alguns assuntos. Esses assuntos já eram anteriores ao Papa Francisco. O Papa Francisco acolheu-os na sua agenda. Os últimos Papas não os tinham acolhido de forma tão clara, mas estes assuntos são assuntos que, quer eclesialmente quer do ponto de vista da humanidade, já prementes anteriormente.

"Não tenho um favorito (...) Devo dizer mesmo, muito sinceramente, que tenho alguns não-favoritos. Há alguns que não gostaria que fossem (eleitos (Papa)"

Francisco deixa uma imagem muito positiva, quer no interior da Igreja quer na sociedade em geral. Isso pode de alguma forma ajudar no caminho a definir pelo próximo Papa?

Eu penso que sim. O denominado consenso mundano que nos orienta aponta para aí, mas a verdade das coisas tem sempre alguma ligação a um senso comum, que dentro da Igreja corresponde ao "sensus fidelium", ao sentido dos fiéis. Isso não pode nunca, nem é tradicional na Igreja, ser descurado. Aliás, uma Igreja clerical que descure o "sensus fidelium" é uma novidade, em certa medida, dentro da Igreja e é bastante recente. Tradicional, tradicional na Igreja é a atenção permanente ao "sensus fidelium" e que neste caso pode ser um "sensus fidelium", um sentido da humanidade, mesmo para além dos muros da Igreja. Portanto, este acolhimento não tem a ver com estratégias simplesmente comunicativas ou de marketing do próprio Papa. Poderia ser, mas tem a ver com o impacto que teve naquilo que é o senso comum que corresponde a uma certa sensibilidade para a verdade que a multidão, a população no conjunto acaba por ter. Isso é um indício muito significativo, aliás, na tradição teológica, esse é precisamente o grande indício do Espírito Santo.

Para terminar, teríamos de colocar esta questão: o professor João Duque tem um cardeal favorito, alguém que desejasse ter como Papa ou considera que é de facto uma eleição muito imprevisível?

Imprevisível é, certamente. Eu conheço alguns melhor que outros, é evidente. acho que alguns têm algumas qualidades, mas, depois, poderiam ter problemas noutros campos. Portanto, nesse sentido não tenho um favorito. Francamente, devo dizer mesmo, muito sinceramente, que tenho alguns não-favoritos. Há alguns que não gostaria que fossem.

Mas tem um perfil favorito?

Evidentemente, eu nunca escondi que, pessoalmente, gostaria que houvesse uma continuidade muito forte com o perfil do Papa Francisco. Que, eventualmente, tivesse outro estilo, OK, isso terá de ter, certamente. Mas gostaria que houvesse uma continuidade muito forte, que eventualmente tivesse algum impacto mais forte também nas estruturas, isso sim. Eventualmente, um cardeal mais jovem, que tivesse outra perspetiva da realidade. Isso não escondo.

Agora, as pessoas concretas, nem todas preenchem as características todas. Portanto, é deixar que a surpresa nos invada. Espero que, de facto, algumas figuras que ainda continuam no conclave não sejam escolhidas. Isso também não escondo, espero que não sejam.