Fernando Leite: “Vai nascer uma nova empresa de energia no Porto” - Sustentabilidade

carteira de identidade idade: 70 anosbens: Lipor, Diretor Geral (desde 1998 Diretor da Área Ambiental, Câmara Municipal de Maya (1976-98);trem: Licenciatura em Economia pela Faculdade de Economia do Porto

A Lipor (Associação para a Gestão Sustentável de Resíduos Municipais) já produz ouro e outros metais não ferrosos, como prata e bronze, a partir dos seus resíduos. “Por cada 70 mil toneladas de resíduos, retirámos cerca de 13 quilos de ouro puro”, a operação é realizada com o apoio de dinamarqueses e britânicos, mas está prevista para ser realizada num projeto autónomo em colaboração com a Valorsul EGF Grupo. Foi o que o CEO da Lipor revelou esta semana durante uma conversa com CEO no âmbito do programa Business Sustainability 20|30. Outro projeto envolve a produção de combustível sintético através da captura de carbono na fábrica para abastecimento às companhias aéreas pelo Aeroporto do Porto. Numa entrevista de mais de meia hora (a entrevista completa pode ser ouvida no podcast), Fernando Leite explica porque a Maya é um modelo na área da gestão de resíduos.

Lidera a Lipor há 27 anos, desde 1998. Você já pensou em ir embora?
Quando temos um projeto pelo qual somos apaixonados, ficamos mais ou menos obcecados pela ideia de construir mais e melhor. Foi este incentivo à criação de uma nova etapa que me permitiu estabilizar-me na gestão da Lipor. Em 1976, a convite do então presidente da Câmara, comecei a organizar um departamento ambiental na Maia. É possível se beneficiar de financiamento comunitário ao aderir. Aprendi muito com meus colegas e conseguimos desenvolver um projeto que continua forte até hoje.

Maya é frequentemente citado como um exemplo de gestão de resíduos. Qual é o segredo?
O segredo é fazer “benchmark” com outros países. Quando vamos a Paris ou outras cidades, temos visto recolha seletiva porta-a-porta e parques de resíduos industriais. Maia criou cinco parques na cidade na década de 1980, todos inspirados na abordagem francesa, que chamamos de ecocentros. Há também triagem de lixo.

Qual foi o seu momento mais memorável?
O primeiro grande momento ocorreu por volta de 1998, quando o falecido professor Lobato Faria, então diretor do Instituto de Resíduos, nos disse que os resíduos começavam a se tornar um problema de saúde pública. Já temos alguns problemas de cólera. São mais de 300 latas de lixo. O primeiro PERSU (Plano Estratégico Municipal de Resíduos) nasceu com o objetivo de eliminar os aterros e construir aterros modernos. O segundo momento foi entre 2005 e 2006, o segundo PERSU. A água está dividida, a Lipor escolhe um caminho e os outros sistemas escolhem outro.

Qual é a diferença?
Lipper acredita que deveríamos ter um sistema integrado de gestão de resíduos onde as fábricas pudessem processar os diversos componentes dos resíduos, minimizando o descarte em aterros sanitários. Esta é a chave para o sucesso. Em 2005 já tínhamos três grandes fábricas. Um de valorização energética onde produzimos eletricidade e sucata ferrosa. A outra é uma unidade de compostagem que produz uma substância utilizada por todos os grandes produtores de vinho do Douro como fertilizante. O terceiro vetor é a reciclagem multimateriais. Em 2010, desenvolvemos uma estratégia chamada 3M – Menos Resíduos, Menos Carbono, Mais Biodiversidade. Durante os debates internos descobrimos que a área de inovação seria um grande avanço. Hoje contamos com um departamento de inovação tanto no nível operacional quanto no financeiro.

Quantas pessoas existem?
Existem atualmente 17 funcionários, incluindo 3 com doutorado. Trabalhamos com quase todas as universidades do país. Através desta equipa estamos envolvidos em cerca de 47 projetos nacionais e internacionais, sempre com foco em resíduos, materiais e energia. A Lipor produz eletricidade a partir de três fontes: queima de resíduos, painéis fotovoltaicos (existem dois parques) e biogás retirado de antigos aterros.

Eles produziram a energia que gastaram…
Completamente. Estamos construindo uma comunidade energética baseada na usina Maya, que gera grandes quantidades de energia através da queima de resíduos. Aproximadamente 170 gigawatts por hora, 24 horas por dia, serão destinados a 28 instituições e 10 municípios. Forneceremos toda a energia consumida pela Câmara Municipal do Porto em edifícios como pavilhões e parques residenciais. Esperamos que as contas de energia das autoridades locais diminuam em aproximadamente 20% a 30%. Algumas destas cidades nem sequer fazem parte do sistema de gestão de resíduos da Lipor, como Paredes, Trofa e Santo Tirso. Mas há também entidades como o Hospital de São João do Porto que também serão dinamizadas por nós, bem como a Casa da Arquitetura e o Instituto Superior de Engenharia.

Quando é que começa?
Acreditamos que começará a partir de meados deste ano (2025). Temos que obter uma licença da Direção Geral de Energia e Geologia e através deste projeto nascerá no Porto uma nova empresa de energia, a ENO – Energias do Norte, distribuindo a energia da região a entidades públicas.

Uma das dificuldades que muitas vezes surge é que as pessoas não separam os seus resíduos. Como eles conseguiram que eles fizessem isso?
A maior mudança foi colocar lixeiras para reciclagem dentro de casa. As pessoas são mais sensíveis à classificação do lixo. Este é o caráter único de Maya.

Mas como isso é possível em um edifício?
É possível. Em residências unifamiliares e bifamiliares isso é fácil porque as pessoas sempre têm um pátio para colocar seus contêineres. Nos edifícios altos, a Maya adotou a casa de resíduos, um compartimento no térreo de todos os edifícios altos onde são armazenados os contêineres. Noutras cidades estamos a construir este tipo de habitações abandonadas em compartimentos o mais próximo possível dos edifícios.

A infraestrutura é importante, mas o custo também?
As taxas também. Voltemos ao exemplo da Maia, que implementou o pay-as-you-throw (PAYT) em mais de 50% das cidades. E eliminou as taxas de lixo das contas de água. Essas pessoas podem perceber que pagam menos e gerem melhor os seus resíduos. Outras cidades estão gradualmente a estudar as tarifas, pois também elas precisam de alterar as regulamentações municipais.

Um dos desafios que enfrentamos é que os aterros sanitários estão chegando ao fim da sua vida útil. Qual a percentagem de resíduos que a Lipor envia para aterro?
Nos últimos anos, 2 a 3 por cento dos nossos resíduos foram para aterros. Já nem temos aterro, partilhamos um sistema vizinho, no Suldouro em Vila Nova de Gaia. Mas sim, temos um problema nacional. Estamos, de facto, numa situação muito dramática, naquele ponto de viragem, voltando ao passado dos aterros.

“Existem sérios riscos (para os recipientes de reciclagem).” “A força-tarefa (de resíduos) deve agora desenvolver planos de emergência.

Mas existe o risco de o aterro retornar?
Em determinadas circunstâncias, isto pode acontecer, o que constitui um risco grave. Esta situação levará a Comissão Europeia a tomar medidas. É necessária uma forte unidade entre todos os sistemas de gestão de resíduos para resolver questões que deveriam ter sido abordadas há anos, mas que permaneceram sem solução durante anos.

O governo criou um grupo de trabalho cuja missão é:
Desenvolver planos de emergência para aterros e estratégias de médio e longo prazo para gestão de resíduos. Quais são as suas expectativas para este grupo de trabalho?
Em breve teremos uma revolução. Minha expectativa para o grupo de trabalho é que ele desenvolva um plano de emergência claro para 2025 e que seja unido por todos. Devemos reconhecer que cada vez mais resíduos estão a entrar nas nossas infra-estruturas e proceder à troca de resíduos entre sistemas de gestão para os ajudar. Mas precisamos de construir mais unidades industriais e de recuperar mais energia a partir de resíduos. Estamos a preparar-nos para criar uma terceira linha de produção de valorização energética de resíduos na nossa fábrica da Maia. A Valorsul em Lisboa está pronta para construir uma quarta linha de produção, que irá apoiar significativamente a região da grande Lisboa. Talvez considerar a criação de uma unidade de valorização energética no Algarve.

Eles já têm alguns produtos redondos. Quer dar um exemplo?
Posso falar dos contentores de recolha de resíduos, os primeiros que podem ser pendurados na parede. Desenvolvido pelas nossas equipes de inovação e produto, comporta 18kg de material e é inteiramente feito de materiais reciclados. Por exemplo, colaborámos com a Corticeira Amorim num projeto em que foi produzida escória micronizada e combinada com cortiça para criar pavimentos residenciais, que foi desenvolvido pela Amorim e lançado nos mercados norte-americano e canadiano.

Eles também têm uma espécie de alcatrão?
O produto será brevemente utilizado na construção das linhas do metro do Porto. Mas existem outros. Temos um projeto com empresas dinamarquesas e britânicas para remover mais metais preciosos. Até o momento, retiramos 7 mil toneladas de metais ferrosos por ano, que são enviadas para a Siderúrgica Nacional. Já estamos separando metais não ferrosos como ouro, prata ou bronze. Eles vêm de telefones celulares ou eletrodomésticos. Por exemplo, para cada 70 mil toneladas de resíduos, removemos aproximadamente 13 quilos de ouro puro. Ainda não temos a tecnologia, estamos trabalhando em como implementá-la.

“Estamos a desenvolver um projeto de produção de combustível sintético através da captura de carbono (…) para abastecer as companhias aéreas no Aeroporto do Porto.”

Quando teremos uma fábrica que produza ouro a partir de sucata?
Temos de considerar projetos com a Valorsul da EGF. Eles têm uma fábrica muito parecida com a nossa e faz sentido nos unirmos para não termos uma linha de produção no norte para separar esses materiais e outra no sul. Isto é o que está acontecendo lá fora. Os dispositivos móveis que usamos agora são da Dinamarca. Eles passaram dois meses aqui processando toda a escória e separando o material. Planejamos construir unidades mais diversificadas para todos esses materiais até 2030.

Qual é o projeto dos sonhos da Lipor, se houver?
O pilar da descarbonização é muito forte na estratégia da empresa. Estamos a desenvolver um projeto de produção de combustíveis sintéticos através da captura do carbono emitido pela central da Maia. Produziremos um combustível sintético para o Aeroporto do Porto, combinando carbono com hidrogénio, para ser fornecido às companhias aéreas que deverão utilizar cerca de 2% a 3% de combustível ecológico. Nossa pesquisa já está em andamento. Porém, o projeto atingiu R$ 500 milhões e deve ser custeado por meio de outras fontes de financiamento. Já estabelecemos parcerias com a Rede Nacional de Energia (neste caso a REN) e com a Smart Energy, um player suíço muito importante nesta área. Por exemplo, o nosso projeto de cimeira será planeado até 2030.