Coração falhou em jogo no Restelo e as portas fecharam-se em Portugal. Após três épocas como adjunto de Ten Hag, está pronto para voltar a ser principal e conta tudo em entrevista n A BOLA
Foi uma referência como defesa, quando era jogador, e agora quer ser uma referência enquanto treinador. O objetivo, aos 53 anos, é voltar ao banco como treinador principal e colocar em prática tudo aquilo que o futebol lhe tem dado e que ele tem dado ao futebol ao longo de várias décadas. Depois de três épocas como adjunto de Erik ten Hag, no Manchester United e no Ajax, voltou a casa, em Portugal, para lutar pelo sonho de treinar na Liga portuguesa. Um sonho do qual fugiu em 2013 quando teve um problema no coração, em pleno Estádio do Restelo. Parou e agora quer voltar a sentir-se vivo.
— Este é o momento certo para lutar por esse sonho de ser treinador principal?
— Sabendo que ao ser treinador principal vou perder alguns jogos e isto vai ser uma loucura outra vez... Sei que enquanto adjunto a vida é mais fácil, mas eu fui sempre treinador principal. Só nos últimos três anos é que trabalhei com o Ten Hag, um ano no Ajax e dois anos no Manchester United. Foi ótimo. Não foi sempre fácil, mas foi espetacular.
— Ter partido de Ten Hag o convite para ser adjunto fez mudar o rumo da vida?
— Sim, sem dúvida nenhuma. Depois de dois anos em que treinei a equipa B do Ajax chegar à equipa A foi muito importante para mim enquanto treinador. Queria conhecer realmente o futebol ofensivo do Ajax. Queria trabalhar com o Ten Hag na Champions League. Ganhámos o campeonato holandês, em 2021/2022, fizemos uma boa Champions League, onde infelizmente perdemos com o Benfica. Queria voltar a ser principal, mas o Ten Hag convidou-me para ir com ele para o Manchester United, em 2022/2023, e foi muito fácil dizer-lhe sim. O Ajax é uma equipa grande, mas o Manchester United é internacional. Se hoje ele me fizesse a mesma pergunta voltava a dizer-lhe que sim. Não foi sempre fácil, principalmente a segunda época não foi fácil, mas aprendi muito e vi muita coisa. Trabalhar na Premier League, também enquanto treinador adjunto, foi espetacular.
— Qual foi o grande desafio de início no Manchester United?
— Só sentes a grandeza do clube quando estás lá. A Premier League é um animal. Não pára. Em termos mundiais é a maior. Nós precisámos de nos adaptarmos e também de ganhar jogos. Nós perdemos os primeiros dois jogos, mas mudámos e fomos melhorando. O jogo em casa contra o Liverpool foi fundamental. Ganhámos e a equipa ganhou confiança. A Premier League é mesmo um animal.
— Como é que é Ten Hag? Tem mau feitio?
— Não. As pessoas de fora tiram conclusões pelo que veem no banco ou a falar com a imprensa. Nós, os holandeses, também somos mais frios e percebo a ideia... Mas ele é bom. Não vai mudar, mas quando as pessoas conhecem Ten Hag percebem que ele é cinco estrelas.
— O vosso segundo ano em Manchester foi um tremendo desafio.
— Sim. Depois da primeira época toda a gente esperava que na segunda fôssemos melhorar. Nós também pensávamos. Mas não aconteceu. O campeonato não correu bem e a Champions League também não. Não passámos, nem para a Liga Europa. Foi difícil, mais para o treinador principal, porque a imprensa, os adeptos e toda a gente caiu em cima dele e dos jogadores. Mas quando pensavam que os jogadores continuariam a perder eles levantaram-se e voltaram a ganhar. Os adeptos tinham razões em criticar, mas apoiaram sempre a equipa, o Erik Ten Hag, o clube. Lembro-me do jogo que perdemos, 4-0 contra o Crystal Palace. Foi uma segunda-feira horrível. Muito difícil, mas os adeptos que foram para o estádio apoiaram-nos sempre. Olhando para trás isso deu-nos uma base que nos permitiu ganhar a final da Taça da Inglaterra (2-1 frente ao City). Não foi sempre fácil, mas as duas épocas foram mais positivas do que negativas.
— A situação com Cristiano Ronaldo também não ajudou a que fosse mais fácil?
— Isto aconteceu na primeira época, antes do Mundial. Infelizmente para o clube, para o treinador e para o Cristiano aconteceu.
— E que Bruno Fernandes encontraste no Manchester United?
— O Bruno quer jogar sempre. Não pára. Quer jogar sempre os 90 minutos, e quase nunca está lesionado. Ele gosta mesmo do futebol, gosta de jogar e sabe o que significa jogar por uma equipa como o United, por isso é um craque em todos os aspetos. Não só dentro do campo, mas também fora do campo. Ele ajuda as pessoas que trabalham no clube e os colegas. É um líder. Ele sente mesmo o clube.
E havia ainda Diogo Dalot.
— Na nossa primeira época afirmou-se como titular. Tem tudo o que um lateral precisa e fora de campo é cinco estrelas. Eu já conhecia o Diogo porque ele é da geração de 99 e, quando jogava no FC Porto, o meu filho Jordan jogava no Benfica. Foram adversários. Já conhecia o percurso dele e a verdade é que é um jogador importante. Também foi um prazer trabalhar com ele. Os jogadores não são só o que jogam... O Cristiano ainda está a jogar, está a marcar golos, mas também mudou mentalmente a forma como os jogadores trabalham, não só dentro do campo. O que significa ser jogador de futebol e isso consegues ver, por exemplo, com o Diogo, com o Bruno e com os outros portugueses. É um exemplo neste aspeto também.
— O Cristiano acabou por influenciá-los para se cuidarem?
— Sem dúvida nenhuma. São muitos jogos e é importante tratar do corpo, porque não é fácil e ninguém quer lesões.
— Quando saiu do Manchester United o Cristiano Ronaldo falou de uma realidade que precisava de ser alterada e agora o Ruben Amorim está como que num momento de viragem. O United precisa de modernizar-se e fazer uma viragem?
— É difícil para mim fazer comparações. Não conheço a realidade de antes de nós chegarmos lá. Claro que pode ser moderno, mas havia campos para treinar, estava lá uma academia para trabalhar, uma piscina e tinha tudo o que a equipa precisava.
— Nunca sentiram que precisavam de mais?
— Não.
— Mas o United vive um momento de viragem e o Ruben Amorim está a senti-lo bem.
— Sim, um treinador precisa sempre de vitórias para transmitir as suas ideias e os jogadores acreditarem nele. Entrar no meio da época é sempre difícil e mais com a mudança que está a acontecer, principalmente fora do clube. Na estrutura, centro de estágio, estádio, e há pessoas que não podem ficar no clube e vão ser despedidas. Há muita coisa à volta do clube. Depois chega um treinador que é top aqui em Portugal, mas depara-se com esta realidade, não tem controlo sobre isso e precisa de trabalhar. Não é fácil e espero bem que tenha tempo para mudar porque não é fácil.
— De fora, vês mais jogos do United, do Ajax, ou tens estado mais atento à Liga portuguesa?
— Nos dois ou três meses seguintes a sair do Manchester United não vi quase nada. Voltei para casa, depois de 10 anos a viajar e a família a ficar cá. Fui ver jogos do Jordan (filho que joga na UD Leiria) e do Luca (filho que joga no Louletano). Não tinha muita energia e foi bom ficar em casa sem fazer nada. Depois comecei a ver jogos. Sempre do Manchester United e via os resultados da Holanda e de Portugal. Depois fui falando com equipas. Fui ver jogos que são interessantes e depois o bichinho felizmente voltou. Comecei a preparar-me para voltar. Já está na hora.
— Estavas a falar dos teus filhos. O Luca é defesa pelo pai ou pelas caraterísticas dele?
— É a última. Eu também queria ser avançado, quando era jovem, e depois tornei-me defesa. O Luca, pela altura que tem, é parecido comigo e começou a jogar como central. O Jordan não tem nada a ver comigo. É canhoto, criativo, rápido e baixinho. Não gosto muito de ver os miúdos a jogar pois fico mais nervoso com os jogos deles do que com os meus. Vejo os jogos como pai e tenho muito medo que se lesionem. Enquanto pai é mais emocional, pois nós queremos a melhor coisa para os filhos.
— Há lá em casa duas filhas que nada têm a ver com o futebol?
— Tentaram as duas, mas não deu. A minha filha mais velha gosta imenso do futebol e o melhor dia para ela é sentar-se no sofá para ver os jogos da Premier League. Vai a Inglaterra ver jogos pois gosta muito e percebe. Está sempre a ver os jogos dos irmãos. A mais nova não gosta nada de futebol. Jogam as duas golfe e já são portuguesas. Falam corretamente e vamos ficar todos por cá.
— Porque vieram para Portugal?
— Não sei... Na altura havia um holandês na Madeira que ajudava o presidente Carlos Pereira devido à ligação a alguns empresários. Eu não sabia nada de Portugal... Fizeram-me um telefonema a convidar-me para o Marítimo e eu de início disse que não. Mas a minha mulher convenceu-me a aceitar. Assinei um contrato de dois anos a achar que depois voltava para a Holanda. Mas fiquei mais um. Depois mais outro... E fui ficando. Fiquei cinco anos e foi a melhor coisa que fiz durante a carreira. Viver na Madeira foi espetacular, até no crescimento dos meus filhos. No início, apanhei o Nelo Vingada que foi sensacional comigo. Ele falava inglês, foi muito calmo comigo e ajudou muito a integrar aquela equipa. Tínhamos o Kenedy, o Iliev, o Gaúcho, o ponta de lança. Eu cheguei na mesma altura com o Alan, que se tornou um grande jogador, e o Pepe tinha 17 anos. Havia o Ezequias e o Dinda. Depois os madeireiros. O Zeca, o Eusébio, o Bruno, o Quim, um ponta de lança grandão, o Jorge Soares, o Albertino... Foi uma equipa fortíssima e correu bem. Tive sorte. Fizemos uma época boa. Depois do Nelo Vingada apanhei o Manuel Cajuda e no início foi muito difícil, mas foi bom e importante para o meu crescimento. Apanhei também um treinador russo (Anatoliy Byshovets) e, infelizmente, não escrevi nada do que ele fez nos treinos, porque foi o melhor treinador que apanhei. Felizmente, com todos os treinadores joguei sempre.
— Jogaste sempre e acabas por conhecer esse menino, de 17 anos, chamado Pepe. Como é que ele era?
— Era um menino que chegou com o Ezequias e o Alan na minha primeira época. Só miúdos. Havia também o Danny... Jogadores de muita qualidade. O Pepe chegou lesionado e começou a treinar na parte final da época. Na segunda época jogou como médio, central e até ponta de lança. Depois, com o Cajuda, na terceira época, jogou mesmo como central. Foi fácil ver que ele tinha qualidade para chegar a uma equipa grande. Ele era um bom miúdo, trabalhador e aceitava a opinião dos outros. Jogar 10 anos no Real Madrid e jogar até aos 40 é mesmo incrível. O menino que chegou à Madeira com 17 anos fazer a carreira que ele fez é sensacional. Foi um prazer para mim trabalhar com ele. Espero bem que um dia ele volte para o futebol.
— Em que momento é que sentiste que querias ser treinador?
— Tirei o primeiro e o segundo nível de treinador, quando jogava no FC Utrecht. Não era muito rápido e pensava sempre no jogo. Percebi naquela altura, em 1999, que no final da carreira iria ser treinador. Acabei a carreira de jogador na Arábia Saudita, no Al Nassr, e depois voltei para a Madeira e pedi para começar a carreira de treinador lá. Comecei como adjunto na equipa B e depois fui para a A. Tirei o curso UEFA A e Pro aqui em Portugal e iniciei-me como principal.
— Foste mais feliz como jogador ou és mais feliz como treinador?
— Como jogador tens a vida mais fácil. O problema é o corpo. Eu em jovem fui operado várias vezes ao joelho e tinha sempre esse problema. Pensava sempre se o joelho aguentava mais um dia, mais um jogo, mais um treino. Quando acabei de jogar foi um alívio e pensei que já não dependia do corpo. Mal sabia eu que cinco anos depois teria algo mais forte e que faria ainda mais depender do corpo... Enquanto treinador nunca páras. Até no dia de folga trabalhas, a ver jogos, a decidir treinos ou a tratar de questões com o clube.
— A determinada altura da vida o coração pregou um grande susto. Foi o maior desafio até hoje?
— Sim. Eu sou muito pragmático. Quando tive o problema do joelho procurei um médico bom, fui operado e continuei. O coração deixa-nos mais perto de uma situação de vida ou morte. É diferente pois tu não tens controlo. Quando acabei a carreira de jogador estava bem fisicamente. Fazia maratonas, ginásio e de um dia para o outro comecei a sentir-me cansado. Muito estranho... Mas continuei a fazer a minha vida. Fiz exames médicos e percebeu-se que precisava de colocar um pacemaker e um CD (Cardioversor Desfibrilhador). No início foi difícil de aceitar porque era muito jovem mas depois aceitei que fazia parte da minha vida. Depois tive o problema durante o jogo (Belenenses-Marítimo a 21 de setembro de 2013) e o impacto foi enorme pois o jogo estava a ser transmitido em direto na televisão. Não havia muita gente que sabia o que se passava comigo. O médico, o presidente e mais algumas pessoas... Acho que foi ao minuto 39... A minha mulher estava na bancada. O Jordan tinha jogo no Benfica. O Luca estava a ver o jogo e as minhas filhas também. O impacto foi enorme para muita gente, mas para mim foi muito fácil. Tive um choque, uma espécie de restart (reiniciar), acordei e estava tudo normal. Estou vivo outra vez e para mim não é tão difícil como parece. É muito esquisito de explicar. Mas é uma coisa que faz parte da minha vida. Não posso fazer muita coisa. Há jogadores com situações assim. O Christian Eriksen, com quem trabalhei, Daley Blind também tem um CDI (Cardioversor Desfibrilhador Implantável). Consigo viver com isto e às vezes até me esqueço. Naquela altura foi mais difícil para as outras pessoas do que para mim. Depois foi mais difícil para encontrar trabalho. Ninguém quis arriscar em mim... Fui para o Chipre, para o Ermis Aradippou, em 2014/2015, pois foi a única oportunidade que tive naquela altura e agarrei-a.
— Sentiste que depois desse problema no coração as portas do futebol fecharam-se em Portugal?
— Sim. Mas não fiquei frustrado nem irritado. Faz parte e até percebo. A vida é assim e só tenho de mostrar que estou vivo.
— E se o coração aguentou a pressão de ser adjunto do Erik ten Hag no Manchester United...
— (risos) E quatro filhos também. Isto faz parte de mim e não faz sentido pensar sempre nisso.
— Situações como a do Eriksen provam que pode haver uma solução até para continuar a jogar.
— Sim. Cada situação tem as suas caraterísticas, mas é importante, até para quem tem problemas e não é figura pública, perceber que a vida continua. Quando me aconteceu senti que precisava de ir para fora e demonstrar que estava vivo e apto. Não podia ficar fechado em casa, triste, porque isso não ia mudar absolutamente nada.
— Agora é o momento de voltar a casa e treinar por cá?
— Quero voltar a treinar aqui em Portugal. Sinto que ainda me falta fazer alguma coisa por cá. No Marítimo correu bem e no Belenenses também, mas depois saí... Falta-me ainda fazer algo por cá. Eu sou mais português do que holandês. Gostava de treinar em Inglaterra, como é óbvio, pela forma impressionante como sentem o futebol, e gostava de uma aventura fora, na MLS ou no Japão, mas quero voltar a treinar cá.
— Quem é hoje o Mitchell van der Gaag treinador?
— Bem diferente. Naquela altura em Portugal a organização defensiva era fortíssima, jogadores fortes, rápidos à frente. A linha de três ou a linha de quatro? A linha de quatro. Fui para a Holanda, aprendi muito coisa no Ajax, e depois na Premier League, onde estão os melhores treinadores e jogadores. Dez anos depois sou melhor do que era. Sou mais completo do que há dez anos.
— Serás um treinador feliz se no início da próxima época estiveres a treinar?
— Sim, sem dúvida nenhuma. Esse é o meu objetivo e espero que alguma coisa apareça no verão.