“Em 2025, a necessidade de reformas tributárias mantém-se” – ECO

Dinis Tracana, managing associate da área de Fiscal da PLMJ,em entrevista à Advocatus fala sobre a importância do contencioso tributário para a relação jurídica fiscal entre Estado e contribuintes.

Dinis Tracana é associado coordenador na área de Fiscal da PLMJ, focando a sua atividade ao nível da consultoria tributária em operações inbound e outbound de estruturação fiscal internacional, reorganizações societárias e operações de fusões e aquisições. Assessora regularmente clientes do setor financeiro e da energia, fundos de investimento e da indústria imobiliária.

O advogado é licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tem um mestrado científico em Direito Fiscal Europeu da mesma universidade e conclui também um LLM avançado em Direito Fiscal Internacional junto do International Tax Center, da Universidade de Leiden. É orador regular em conferências nacionais e internacionais dedicadas a matérias fiscais, colaborando com o Centro de Estudos Judiciários desde 2016. Foi professor convidado em Direito Fiscal Europeu e Preços de Transferência no International Tax Center Leiden (2017-2021) e responsável pela cadeira de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas no mestrado em Direito Fiscal da Universidade Católica Portuguesa (2020-2024).

É associado do CIDEEFF – Centro de Investigação de Direito Europeu, Económico, Financeiro e Fiscal da Universidade de Direito de Lisboa, e membro da AFP – Associação Fiscal Portuguesa e da IFA – International Fiscal Association. Na entrevista ao ECO/advocatus, fala sobre a importância do contencioso tributário para a definição de relação jurídica fiscal que se estabelece entre o Estado e os contribuintes, tributação verde e de que forma as eleições antecipadas podem influenciar as reformas fiscais, ou falta delas.

Qual o perigo a nível de reformas fiscais – ou falta delas – com a marcação de eleições legislativas antecipadas?

O perigo a nível de reformas fiscais, independentemente da marcação de eleições legislativas antecipadas, prende-se principalmente com a falta de consenso político quanto às medidas adotadas, que pode levar à sua reversão no ciclo legislativo seguinte e criar, dessa forma, instabilidade legislativa e incerteza junto dos contribuintes – sejam eles pessoas singulares ou empresas.

Um bom exemplo relativamente recente desta situação foi a Reforma do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) de 2014. Em 2013, o então Governo PSD / CDS acordou com o PS, à data liderado por António José Seguro, a redução da taxa de IRC de 25% para 23% em 2014. O acordo previa, também, uma redução progressiva da taxa de IRC até um intervalo entre os 19% e os 17% nos anos seguintes. Com a mudança do secretário-geral no Partido Socialista, esse acordo foi incumprido e, em 2015, o PS deixou de mostrar disponibilidade para baixar a taxa de IRC para além dos 23%. Também o regime de participation exemption (isenção de tributação sobre lucros distribuídos e mais-valias com a venda de participações sociais, como forma de eliminação da dupla tributação económica) foi sujeito a diversas alterações e retrocessos nos anos seguintes.

Apesar de ninguém ter colocado em causa a necessidade da reforma do IRC como propulsor de investimento em Portugal, a falta de consenso político acabou por dar lugar a várias alterações legislativas sucessivas e desnecessárias, conduzindo talvez ao abrandamento do impacto muito positivo que aquela reforma teve no sistema português.

Existem ainda outros exemplos mais recentes, ainda que não no âmbito de reformas fiscais, como seja a introdução de um regime fiscal para os fundos de crédito. A figura dos fundos de crédito foi introduzida em Portugal em 2019, mas o seu regime fiscal foi apenas aprovado em 2024. O motivo para a demora foi, primeiramente, falta de consenso político (no âmbito da Governação PS com acordo parlamentar com o Bloco de Esquerda e o PCP) e, posteriormente, uma aparente escolha política (já no âmbito da Governação PS em maioria absoluta).

Em 2025, a necessidade de reformas tributárias mantém-se: claramente as normas relacionadas com o procedimento e processo tributário necessitam de simplificação (e aguardam-se aqui, com muita expectativa, as propostas da Comissão que foi estabelecida para este efeito em 2024), a tributação das pessoas singulares é hoje uma complexa manta de retalhos desnecessariamente complexa, o Imposto do Selo cria claras distorções artificiais nas restruturações de financiamentos, etc.

A necessidade quase constante de reformas tributárias demonstra, acima de tudo, uma falta de visão estratégica na definição do que é, ou deve ser, a política fiscal do país – a qual, sem prejuízo de diferentes abordagens consoante os partidos representados no Parlamento, deveria ter uma “trave mestra” que servisse de base à lei fiscal. Muitas das discussões públicas sobre tributação e reformas fiscais têm uma base vincadamente ideológica – a questão da flat tax na tributação das pessoas singulares, a redução sem mais da taxa do IRC como solução milagrosa para a atração de investimento estrangeiro, etc. – mas são manifestamente insuficientes de um ponto de vista técnico.

Independentemente de ideologia, podíamos e devíamos discutir medidas estruturais (que se querem consensuais) relevantes como a criação de grupos fiscais para efeitos de IVA (medida que consta, aliás, do programa Acelerar a Economia); como a adoção de uma taxa de 0% de IVA nas vendas de imóveis residenciais, que permitisse aos construtores deduzir o IVA suportado com os materiais, e que acaba hoje por ser repercutido no preço final da habitação; como a tributação dos parques eólicos e solares, em sede de IMI, pode desacelerar a transição energética, entre muitas outras medidas.

Em suma, e recapitulando um pouco a ideia inicial, o perigo das reformas fiscais não está tanto relacionado com a marcação de eleições antecipadas, mas sim com a incapacidade de consenso político em aspetos fraturantes e estruturais como sejam a tributação. Os indícios recentes nesta última legislatura e campanha eleitoral não indiciam, infelizmente, nada de bom a este respeito.

O perigo a nível de reformas fiscais, independentemente da marcação de eleições legislativas antecipadas, prende-se principalmente com a falta de consenso político quanto às medidas adotadas, que pode levar à sua reversão no ciclo legislativo seguinte e criar, dessa forma, instabilidade legislativa e incerteza junto dos contribuintes – sejam eles pessoas singulares ou empresas”

Como está a evoluir a tributação verde em Portugal?

Diria que genericamente bem, relativamente em linha com outros países europeus, mas podíamos ser mais ambiciosos.

Em 2015 ocorreu uma reforma da tributação da fiscalidade verde, a qual foi muito importante e teve um efeito manifestamente positivo. Com as alterações introduzidas procurou-se, de certa forma, penalizar comportamentos prejudiciais ao ambiente, beneficiando assim os contribuintes que adotassem comportamentos mais sustentáveis. Em 2021, foi introduzida uma taxa de carbono sobre os consumidores de viagens aéreas, marítimas e fluviais e, em 2022, foi introduzida uma contribuição extraordinária e temporária sobre os lucros excecionais do setor energético. Estão ainda em vigor, para além do mais, taxas e contribuições setoriais relevantes.

Estas medidas revelam uma muito merecida atenção, por parte do legislador, à tributação verde em Portugal mas são, a meu ver, insuficientes caso se pretenda utilizar os impostos como um fator de transformação da realidade portuguesa para uma economia verde.

Portugal, pelas suas características geográficas, pode ser um muito relevante produtor de energia de forma sustentável – porque não criar um enquadramento fiscal que acelere esse investimento em infraestrutura em Portugal? Por exemplo, face ao insignificante impacto orçamental que tem, seria muito importante clarificar que os parques eólicos e solares não estão sujeitos a IMI. Seria também importante criar condições que ajudem a reduzir os custos (nos quais se incluem impostos) na aposta nas energias renováveis ou no desenvolvimento de tecnologias e processos mais sustentáveis – seja através de mecanismos de créditos fiscais ou com a ampliação do regime de patent box. Um regime fiscal específico e vantajoso para a emissão de green bonds seria também uma medida que poderia ter um impacto positivo.

A criação desta infraestrutura permitiria também atrair – como já tem vindo a ser noticiado, na verdade – mais investimentos em Portugal em indústrias com elevado consumo energético, criando assim mais postos de trabalhos qualificados e bem remunerados.

Naturalmente que as medidas fiscais não constituem, por si só, o motivo que permitiria esta transformação. No entanto, em conjunto com um enquadramento legal e regulatório competitivo e flexível, seria mais um importante elemento na atração de investimento “transformativo” na e da economia portuguesa.

Portugal, pelas suas características geográficas, pode ser um muito relevante produtor de energia de forma sustentável – porque não criar um enquadramento fiscal que acelere esse investimento em infraestrutura em Portugal? Por exemplo, face ao insignificante impacto orçamental que tem, seria muito importante clarificar que os parques eólicos e solares não estão sujeitos a IMI”

Qual a importância do contencioso tributário para a definição de relação jurídica fiscal que se estabelece entre o Estado e os contribuintes?

É absolutamente essencial. Contrariamente ao contencioso de direito civil (entre particulares), na relação jurídica tributária uma das partes – o Estado – está claramente numa posição mais forte que a outra (o contribuinte).

De certa forma, o Estado, representado pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), tem a “faca e o queijo na mão”: sempre que assim o entenda, no âmbito de inspeções tributárias, a AT emite uma liquidação de imposto que terá de ser paga pelo contribuinte. O contribuinte poderá querer discutir essa liquidação, poderá até ter jurisprudência a suportar o enquadramento fiscal aplicado no caso concreto, mas a sua posição será sempre mais fraca: tem de pagar o imposto e, caso não o faça, haverá lugar a um processo de execução fiscal, o qual só ficará suspenso mediante a apresentação de uma garantia. Dito por outras palavras, mesmo que a final tenha razão, o contribuinte está sempre obrigado a pagar ou a apresentar garantia, e a ter de passar por todo um processo (moroso) que pode criar algumas dificuldades financeiras.

O contencioso tributário, particularmente o contencioso judicial ou arbitral, é a garantia que os direitos do contribuinte – especialmente o direito de lhe ser aplicada a legislação fiscal de forma correta e ponderada – são respeitados, independentemente da posição “mais fraca” que o contribuinte possa assumir na relação jurídico-tributária.

Houve uma falta de vontade política para a reforma legislativa da legislação processual tributária até aqui?

Não sei se será justo dizer que não tenha havido vontade política, parece-me mais uma questão de não ter sido considerado prioritário.

Se desconsiderarmos discussões sobre o que constitui uma verdadeira “reforma” da legislação processual tributária, parece-me bastante claro que esta matéria tem estado sempre no radar do legislador. Para além das alterações pontuais e com caráter anual à Lei Geral Tributária e ao Código do Procedimento e Processo Tributários, tivemos um conjunto muito significativo e alargado de alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, e pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, que são reveladoras da atenção que este tema tem merecido.

A necessidade de uma reforma da legislação processual tributária resulta, porém, dessas alterações constantes, que acabam por fragmentar a legislação e, dessa forma, levar à perda da visão de conjunto que se conseguiu numa fase inicial. A constituição de uma Comissão para a Reforma da legislação procedimental e processual tributária revela que o próprio legislador identificou a necessidade de revisitar o regime como um todo, de modo a garantir maior coerências nas regras que regulam os direitos e garantias dos contribuintes.

Quais são os tipos mais comuns de litígios entre contribuintes e a AT em Portugal?

Existem matérias que, pela sua natureza e frequência, estão sempre no radar da AT e acabam por dar lugar a litígios recorrentes. Em sede de IRS, a aplicação do regime de reinvestimento de mais-valias realizadas com a venda de imóveis é uma matéria sempre muito escrutinada. No IRC, a dedutibilidade das despesas é uma matéria sempre muito relevante, assim como tributações autónomas ou a retenção na fonte sobre os pagamentos realizados a não-residentes na aquisição de serviços. No IVA, levantam-se sempre questões relacionadas com dedutibilidade do IVA, com a localização das operações e com o regime de renúncia à isenção do IVA em operações relacionadas com imóveis.

Para além dos temas mais comuns, existem depois matérias que são mais tópicas e revelam as prioridades da AT ao longo do tempo. No início da década de 2010, houve um período de clara atenção à indústria financeira, particularmente nas operações que envolviam os chamados empréstimos mal parados (Non performing loans ou NPLs). Na última década, tem-se assistido também a muitos litígios relativos à aplicação da taxa reduzida de IVA nas empreitadas de reabilitação urbana – que conduziram ao acórdão uniformizador de jurisprudência do STA, publicado no final de março. Mais recentemente, temos assistido a um número crescente de litígios relacionados com a aplicação das isenções ou taxas reduzidas de IRS no âmbito do regime dos Residentes Não-Habituais, assim como com a desaplicação das isenções de retenção na fonte aplicadas nos pagamentos de juros e distribuições de lucros a entidades não-residentes. À medida que o tempo passa e a lei vai sendo alterada, mudam também (e bem) as prioridades da AT e, consequentemente, o tipo de litígio entre a AT e os contribuintes.

Os custos de advogados e processos judiciais são um entrave para os contribuintes contestarem decisões da AT?

Sem dúvida. Quando estão em causa contribuintes com maior capacidade financeira (que estão também normalmente sujeitos a liquidações adicionais de imposto mais elevada), os custos com advogados e processos judiciais (ou arbitrais) não são necessariamente um entrave e acabam por não precludir a capacidade do contribuinte em contestar a decisão da AT.

Quando estejam em causa, no entanto, as chamadas bagatelas fiscais, a resposta será necessariamente diferente. Quando se depare com uma liquidação de, por exemplo, € 500 – por mais que seja manifestamente incorreta – muitos contribuintes não querem (ou não têm os meios) para contestar essa decisão. Desde logo porque teriam de contratar um advogado e, caso a discussão acabasse em sede judicial ou arbitral, acresceriam ainda custas judiciais / arbitrais. Neste tipo de situações, a posição de maior força da AT na relação jurídico-tributária, acaba claramente por prevalecer em detrimento dos direitos dos contribuintes.

Quais as taxas de sucesso dos contribuintes em litígios contra a AT (tendência)?

As estatísticas mais recentes indicam que a maioria das decisões judiciais e arbitrais favorecem os contribuintes, ainda que a percentagem de decisões a favor da AT esteja a aumentar.

Parece-me, porém, importante recordar que quando falamos de litígios não estão em causa apenas liquidações adicionais por parte da AT, mas também pedidos de reembolsos de imposto já pago pelos contribuintes, nomeadamente em situações em que a lei portuguesa é violadora do Direito da União Europeia (que surgem com cada vez maior frequência) ou da Constituição da República Portuguesa (neste âmbito, tipicamente por questões relacionadas com princípio da igualdade e proporcionalidade, o princípio da capacidade contributiva ou princípio da legalidade). Neste tipo de contencioso, as decisões têm sido manifestamente a favor do contribuinte.

Como é garantido o princípio da igualdade entre grandes empresas e pequenos contribuintes?

Infelizmente, não sei se essa igualdade é verdadeiramente possível. Naturalmente que, perante a lei e perante os tribunais, as grandes empresas e os pequenos contribuintes são tratados de forma igual e isso não me parece passível de contestação.

Sem prejuízo, as grandes empresas acabam por ter os meios financeiros para contestar e litigar quaisquer liquidações de imposto, enquanto os pequenos contribuintes não têm sempre essa possibilidade – particularmente quando estão em causa bagatelas fiscais, aquelas liquidações de imposto que, envolvendo alguns valores com alguma relevância, não são elevadas o suficiente para justificar avançar com contencioso administrativo e judicial. Em última instância, um pequeno contribuinte pode acabar a pagar imposto que considera indevido simplesmente porque pode não valer a pena suportar o custo necessário discutir a legalidade da liquidação desse imposto.

Antecipo que não haja apenas uma cura para este mal. Qualquer solução teria de passar, desde logo, pela adoção de uma postura mais colaborativa por parte da AT quando esteja perante pequenos contribuintes, assumindo uma função que não seja apenas a de arrecadar receita fiscal, mas sim trabalhar com os contribuintes para que conheçam e façam valer os seus direitos, não se refugiando em aspetos formais. Para além disso, seria interessante a criação de um meio alternativo de resolução de litígios, uma espécie de mediação tributária para bagatelas fiscais, a que o contribuinte pudesse recorrer sem custos adicionais.

O Portal das Finanças e a submissão eletrónica de recursos melhoraram o acesso à justiça fiscal?

De um modo geral, a experiência com a utilização do Portal das Finanças e a submissão eletrónica de recursos simplificaram os procedimentos e, com isso, o acesso à justiça.

No entanto, o recurso ao Portal das Finanças – particularmente ao e-Balcão – tem conduzido a situações que se prolongam desnecessariamente. Questões que, no passado, eram resolvidas num serviço de finanças local ou ao telefone, são agora reencaminhadas para o e-Balcão, onde o interlocutor muda a cada mensagem e onde por vezes é difícil explicar a totalidade da situação em causa, levando a respostas muito pouco úteis e que exigem muito mais dispêndio de tempo em trocas de comunicações.

A automatização de liquidações (como o e-fatura) reduz erros ou aumenta litígios?

A utilização da informação registada no e-Fatura para efeitos das liquidações de IRS tem sido positiva e reduz a possibilidade de erros e litígios. Na medida em que as faturas estão registadas no e-Fatura, devidamente qualificadas (desde logo, face ao CAE registado das entidades emitentes das faturas), a probabilidade de erro do contribuinte diminui e, como tal, diminui também a possibilidade de liquidações adicionais e litígios com a AT.

Têm-se identificado, em todo o caso, variadas situações em que o sistema informático da AT, utilizado para as liquidações de imposto, não respeita as disposições legais, gerando dessa forma algum contencioso (tipicamente meramente administrativo).

A AT usa inteligência artificial para análise de processos. Isso pode prejudicar o contribuinte?

A utilização de inteligência artificial é uma inevitabilidade e, mais do que assumir ou presumir que pode prejudicar o contribuinte, é importante compreender de que modo está a ser usado e quais os erros que foram já cometidos noutros países para podermos evitá-los.

O mais importante é compreender que o modelo de inteligência artificial utilizado será o resultado que se fizer com ele, ou seja, da informação lhe for disponibilizada e da forma como ele será “treinado”. Na área tributária, a inteligência artificial é utilizada para identificar determinados padrões de comportamento – nomeadamente em casos de evasão e fraude fiscal -, que serão depois empregues como critério de busca de outras situações semelhantes. A vantagem da inteligência artificial seria, teoricamente, a de permitir maximizar a obtenção de resultados, eliminando os biases (viés) humanos que sempre existem. O problema deste cenário idílico é que os padrões de comportamento tidos como critérios de base para a busca de novos casos podem estar relacionados, mas não ser causa, das situações de fraude – o que significa que há um risco sério de erro ou consequências indesejadas na análise realizada.

Um exemplo muito claro das consequências nefastas da utilização de inteligência artificial na área tributária chegou-nos dos Países Baixos, em que a administração tributária acusou, ao longo de uma década, mais de 26.000 famílias de fraude por benefício indevido de deduções relacionadas com despesas de educação, sendo que mais de metade eram imigrantes ou estavam em situação vulnerável. Quando se descobriu os critérios usados, concluiu-se que as acusações eram largamente infundadas, o que levou inclusivamente à queda do governo neerlandês. O problema subjacente foi, naturalmente, a forma como o algoritmo foi criado e não a utilização de inteligência artificial em si mesma.

Diria que deste exemplo (extremo), podemos tirar duas conclusões para o caso português: primeiro, que a inteligência artificial deve ser usada como forma de aumento de eficiência, mas é essencial garantir a adequação do algoritmo ao que se encontra previsto na lei; e, segundo, que os contribuintes terão que ter atenção redobrada aos relatórios de inspeção subjacentes a liquidações adicionais de imposto, questionando sempre que necessário a fonte da informação e a forma como é apresentada, na medida em que o ónus da prova recai primeiramente sobre a AT. Será, em todo o caso, muito interessante observar os desenvolvimentos futuros sobre a utilização da inteligência artificial pela AT em Portugal.

O mais importante é compreender que o modelo de inteligência artificial utilizado será o resultado que se fizer com ele, ou seja, da informação lhe for disponibilizada e da forma como ele será “treinado”. Na área tributária, a inteligência artificial é utilizada para identificar determinados padrões de comportamento – nomeadamente em casos de evasão e fraude fiscal -, que serão depois empregues como critério de busca de outras situações semelhantes”

Há cláusulas abusivas na legislação tributária que geram insegurança jurídica?

Sim, mas não são só as normas anti-abuso que criam essa insegurança. O direito fiscal é um ramo do direito que, pela necessidade de delimitar o que está sujeito ou não a imposto, recorre frequentemente a conceitos amplos e sujeitos a uma margem de interpretação discricionária por parte da AT, o que implica desde logo alguma insegurança jurídica na interpretação da lei fiscal (principalmente quando estejam em causa normas recentes e sobre as quais não existe ainda doutrina administrativa ou jurisprudência).

No âmbito específico das normas anti-abuso, destacam-se as cláusulas gerais ou setoriais anti-abuso que se pautam sempre pelo seu caráter residual, ou seja, como válvula de escape para quaisquer situações que a AT possa considerar como abusivas. Essa amplitude interpretativa tem, naturalmente, gerado muito contencioso com a AT e existe hoje um acervo jurisprudencial muito considerável – que, ainda assim, não chega para eliminar essa incerteza interpretativa geradora de insegurança jurídica.

Destacaria, em todo o caso, para além do que referi, que esta insegurança jurídica que se sente na aplicação de normas anti-abuso pode resultar também da interpretação realizada pela AT. Um exemplo que tem dado origem a muito contencioso relaciona-se com a norma do Código do IRS que determina que as perdas realizadas em transmissões de partes sociais não são consideradas quando a contraparte esteja domiciliada num paraíso fiscal. Apesar da letra clara da lei, a AT tem defendido que o conceito de contraparte deve ser interpretado como a entidade cujas partes sociais estão a ser transmitidas – posição que tem sido rejeitada pelos tribunais. Neste caso, a insegurança jurídica criada na aplicação desta norma anti-abuso resulta não da regra em si, mas da sua interpretação pela AT, que extravasa claramente a margem de discricionariedade interpretativa que lhe é atribuída.

Que mudanças na lei seriam necessárias para tornar o sistema mais justo?

Um sistema fiscal mais justo implicaria, provavelmente, uma alteração muito abrangente em diversos impostos e nas regras de procedimento e processo tributário. Não pretendendo ser exaustivo, as minhas primeiras sugestões seriam as seguintes:

Criar condições para igualdade de armas entre contribuintes e AT no âmbito do procedimento e processo tributário. Para além da muito necessária simplificação, tenho muita dificuldade em aceitar que a AT tenha, como regra, um período de quatro anos para emitir novas liquidações de imposto (período que pode ser superior devido às possibilidades, ainda que limitadas, de suspensão do prazo de caducidade) sem qualquer limitação, enquanto um contribuinte que tenha cometido um erro ou tenha sido sujeito a uma norma viciada por alguma ilegalidade (e.g.: inconstitucionalidade, violação do direito fiscal europeu, etc.) e queira recuperar o imposto pago em excesso esteja sujeito a limitações adicionais no terceiro e quarto ano (no âmbito da chamada revisão oficiosa). Se o que se pretende é assegurar a legalidade na cobrança de tributos, esse princípio deve vigorar para ambas as partes, e não em maior benefício para a AT.

Reduzir drasticamente as isenções e taxas reduzidas de IVA, que naturalmente criam distorções artificiais no mercado empresarial, por compensação com uma redução significativa da taxa geral de IVA.

Revisão do programa de incentivos a inspetores tributários com base no volume de liquidações de imposto emitidas. Quando, nos anos seguintes, tais liquidações sejam revertidas em sede judicial e/ou estejam em desacordo com jurisprudência constante, deveriam também ser consideradas (negativamente) no cumprimento do objetivo de liquidações de imposto.
Criação de um período máximo para que as decisões europeias em que normas portuguesas sejam consideradas contrárias ao direito europeu passem a ser efetivamente aplicadas. Recordo-me, em particular, da decisão do Tribunal de Justiça da UE no caso Brisal, em 2016, cuja discriminação então identificada continua aplicável e que tem dado lugar a jurisprudência do STA, sem que a lei ou a interpretação da AT tenha sido alterada.

Portugal deveria adotar um Tribunal Tributário independente, como em outros países?

Portugal adotou uma jurisdição administrativa e fiscal, no âmbito da qual existem já os tribunais tributários. Nesse sentido, não me parece que se justifique verdadeiramente a criação de uma jurisdição tributária independente ou separada da administrativa.

Parece-me, no entanto, que se justificam alterações no sistema de formação dos auditores de justiça. De facto, na medida em que a jurisdição atual é administrativa e fiscal, esses auditores recebem formação quer em direito administrativo em sentido estrito, quer em direito fiscal. Face à cada vez maior complexidade das normas fiscais, far-me-ia todo o sentido que os auditores de justiça escolhessem ab initio qual a carreira que pretendessem seguir, para que pudessem receber mais e melhor formação nessa área, garantindo-se assim uma (ainda maior) qualificação e especialização do corpo de juízes em Portugal.

O funcionamento célere e eficiente da justiça tributária arbitral não provocou uma falta de investimento na justiça tributária estadual?

Sim. À medida que o número de processos a dar entrada nos tribunais judiciais de primeira instância diminui (por contrapartida com o número de processos que dão entrada no CAAD, que tem aumentado substancialmente), a necessidade de contratar novos juízes da área tributária diminui e julgo que é isso que tem acontecido.

Parece-me um claro erro estratégico e que poderá ter consequências graves a médio-longo prazo. Ninguém coloca em causa as vantagens da arbitragem tributária, mas o progressivo “abandono” da jurisdição judicial tributária implica necessariamente uma quase privatização da justiça tributária. Se assim for, a tendência natural será que o número de processos arbitrais continue a aumentar e, com isso, poderá ser difícil continuar a garantir decisões no tempo máximo atualmente previsto (ou a manutenção da sua qualidade).