Eles adoptaram cães perdidos na guerra da Ucrânia: “Também são ucranianos” | Pet

Pouco depois de a Rússia invadir a Ucrânia, em Fevereiro de 2022, o principal diplomata de Kiev tomou uma decisão de política externa bastante pessoal e pouco conhecida: incentivou os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia a levarem os cães para o trabalho.

A regra de Dmytro Kuleba significava que os funcionários não teriam de deixar os animais aterrorizados em casa durante os ataques com mísseis e drones.

E significava também que o novo cão de Kuleba, um bulldog francês cinzento chamado Marik, retirado dos escombros da sitiada cidade portuária de Mariupol, passaria os anos seguintes a ouvir discussões de política externa enquanto andava pelo gabinete.

O antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia, Dmytro Kuleba, brinca com os seus cães resgatados, Marik, de 3 anos, e Puzan, também de 3 anos, em casa, em Kiev Serhiy Morgunov — FTWP

Um arranjo destes pode parecer insólito para um ministro dos Negócios Estrangeiros — mas não na Ucrânia em tempo de guerra.

A invasão russa tornou a segurança dos animais de estimação uma prioridade nacional. Famílias em cidades na linha da frente fogem frequentemente aos bombardeamentos russos com vários animais a reboque, e os soldados alimentam e cuidam dos que ficam para trás. Voluntários arriscam depois as suas vidas para os levar para cidades mais seguras, onde muitas vezes são adoptados por famílias ucranianas ou enviados para o estrangeiro.

O empenho dos soldados e voluntários ucranianos no resgate de cães vulneráveis provocou uma transformação cultural maciça, convertendo a Ucrânia — antes criticada pelo tratamento dado aos animais — num país extraordinariamente “amigo dos cães”. Acabaram-se as regras antiquadas que proibiam animais em muitos espaços. Kuleba demitiu-se em 2024, mas o ministério confirmou que a sua política canina se mantém em vigor.

Hoje em dia, os cães são bem-vindos na maioria dos restaurantes, cafés, salões de beleza, supermercados e hotéis nas grandes cidades ucranianas. São frequentemente recebidos com taças de água, biscoitos ou, em certos casos, até com ementas próprias.

E, tal como o Marik, o bulldog francês, e o resgate posterior de Kuleba, o Puzan, vindo da cidade oriental de Lyman, muitos destes cães foram salvos da linha da frente. Nos vastos parques de Kiev, as famílias trocam agora histórias sobre as origens dos seus cães rafeiros, descrevendo fugas dramáticas da guerra.

Aqui ficam algumas das histórias destes cães de guerra.

Uma necessidade básica

Uma matilha de cães abandonados vagueava por uma aldeia quase deserta perto da frente oriental, onde o soldado ucraniano Mykola Kulivets estava colocado em 2022 — mas a mais pequena, com o seu longo pêlo preto e orelhas pontiagudas, destacava-se.

Numa manhã de Abril, apareceu sozinha à porta da base improvisada de Kulivets. Ele deu-lhe uma salsicha e ela nunca mais o deixou. Lavou-lhe o pêlo sujo e embaraçado, chamou-lhe Zhuzha, deixou-a entrar — e, dois meses depois, acordou com ela a dar à luz debaixo do seu catre.

O momento não podia ser mais impróprio: o batalhão de Kulivets estava prestes a mudar-se para uma aldeia perto da cidade da linha da frente de Avdiivka, e ele agora tinha seis cães — incluindo cinco cachorros — ao seu cuidado. O seu comandante, também amante de cães, disse-lhe para os levar consigo.

Durante o resto do Verão, com batalhas ferozes a poucos quilómetros, os cães distraíam Kulivets e os seus camaradas dos horrores da guerra. “Ter um ser pequenino de quem cuidar — acho que é uma necessidade básica de qualquer ser humano”, disse ele.

À distância, a mãe de Kulivets ajudou a encontrar lares para os quatro machos por toda a Ucrânia. Os avós ficaram com a única fêmea, a quem chamaram Asya. No final de Agosto, quando os cachorros tinham dois meses, Kulivets foi até Dnipro entregá-los à mãe — a primeira vez que a via desde que fora mobilizado. Regressou à guerra no mesmo dia com apenas a Zhuzha.

Zhuzha, que tem cerca de 6 anos, foi adoptada por Mykola Kulivets enquanto ele servia nas forças armadas ucranianas. Depois de sobreviverem juntos a várias missões na linha da frente, ambos foram desmobilizados e mudaram-se para Kiev. Kulivets levou Zhuzha ao primeiro encontro com Maria Smirnova, que se apaixonou pelos dois. Vivem todos juntos Serhiy Morgunov — FTWP

De volta ao Leste, Kulivets mudou-se com Zhuzha para a cidade de Bakhmut, mais tarde destruída e ocupada pela Rússia. Sob bombardeamentos intensos, levava-a apressadamente à rua para as suas necessidades. A equipa afeiçoou-se tanto que deu o nome dela ao centro de comando, e o nome “Zhuzha” passou a constar de ordens militares oficiais.

Kulivets e Zhuzha acabaram por ser desmobilizados e ambos se adaptaram à vida civil em Kiev. “Quando o meu comandante me liga, a primeira pergunta não é sobre mim — é sobre a Zhuzha”, disse.

Em aldeias nos arredores de Kiev, Elina Sutiahyna, de 64 anos, e Nadiia Tkachenko, também de 64, amigas que geriam pequenas bancas no mesmo mercado, ouviram através de voluntários que os cachorros da Zhuzha precisavam de um lar.

Tkachenko adoptou outro e chamou-lhe Archie.

Nadiia Tkachenko com o Archie, de 2 anos, numa aldeia nos arredores de Kiev Serhiy Morgunov — FTWP

“Para mim, era importante ajudar um animal vindo da linha da frente”, disse ela. “Se vires aqueles vídeos dos soldados com os animais, não consegues evitar chorar.”

Já não é normal comprar cães

No início da guerra, Hanna Rudyk, directora adjunta do Museu Khanenko de Kiev, saiu de casa com a filha pequena, Silviia. Mudaram-se para a Alemanha, enquanto o marido, Artem, ficou para trás, impossibilitado de sair do país devido à lei marcial que impede os homens de viajar.

Rudyk sabia que acabariam por regressar a Kiev, mas temia que as sirenes e explosões traumatizassem Silviia, agora com dez anos. Talvez, pensou, um cão ajudasse. Mas teria de ser um resgate — em tempo de guerra, disse, “já não é normal comprar cães”.

Foi então que viu uma publicação no Facebook de uma voluntária. Tropas que combatiam na cidade oriental de Toretsk, entretanto destruída por artilharia russa, estavam a cuidar de uma cadela que dera à luz na sua posição. Os cachorros sobreviventes tinham sido resgatados — e um ainda precisava de um lar.

Era uma fêmea branca com manchas castanhas e grandes orelhas pontiagudas como uma personagem de desenhos animados. Chamaram-lhe Latka, que em ucraniano significa “remendo”.

Rudyk e a filha, Silviia, de dez anos, com a Latka. A família adoptou a Latka em parte para confortar a Silviia durante os alertas de ataque aéreo Serhiy Morgunov — FTWP

A sua personalidade trapalhona ajudou Silviia a adaptar-se à vida em tempo de guerra. Quando os ataques russos a Kiev as obrigam a refugiar-se durante a noite, Silviia e Latka aninham-se juntas no corredor e adormecem de novo.

Do outro lado da cidade, um cachorro de uma ninhada diferente de Toretsk também se adaptava à sua nova vida.

Serhii Piatkov, de 35 anos, já tinha um cão — o Leonardo, um toy terrier russo com nome de Tartaruga Ninja — quando começou a doar cerca de 25 euros por mês a um abrigo de animais em Kiev.

Em Julho de 2024, o abrigo organizou uma campanha de adopção. Piatkov, que dirige uma agência de publicidade, passou por lá e cruzou olhares com um cão preto e branco, tipo border collie, com patas salpicadas. Resgatado ainda bebé de Toretsk, estava agora rodeado de cães com deficiências graves. Parecia deslocado, pensou Piatkov.

Dias depois, levou-o para casa.

Serhiy Morgunov — FTWP
Serhiy Morgunov — FTWP

Mantendo o tema das Tartarugas Ninja, chamou-lhe Donatello Doni, para abreviar. “É o meu pequeno urso”, disse.

Os cães são amigos e parceiros

Lisa, de três anos, não se importa quando as sirenes de ataque aéreo soam em Kiev, porque isso significa que a sua dona, Olesya Drashkaba, vem esconder-se junto à cama de Lisa no corredor.

Lisa recebeu o nome da cidade ucraniana oriental onde nasceu, Lysychansk — que as forças russas ocuparam em 2022.

Drashkaba, uma artista, estava no estrangeiro no início da guerra, mas quando regressou a Kiev e abriu o seu apartamento vazio, soube imediatamente que ia precisar de um cão.

Amigos partilharam fotografias da Lisa, que tinha sido recentemente resgatada do Leste, e Drashkaba apaixonou-se pela divertida cadela ruiva morena.

Lisa adaptou-se rapidamente à vida a saltitar entre o estúdio de Drashkaba, exposições e cafés da moda no centro de Kiev. Ela atrai a atenção de tantos transeuntes que Drashkaba conheceu o seu actual companheiro quando ele parou para cumprimentar Lisa.

A Lisa, de 3 anos, no estúdio da dona em Kiev. Nascida na cidade do leste Lysychansk, foi resgatada quando era bebé e levada para um abrigo em Kiev, onde a artista Olesya Drashkaba a adoptou.
Drashkaba no seu estúdio com a Lisa. “Ela era muito, muito, muito frágil, muito educada e boa desde o início”, disse Drashkaba. “A Lisa resolveu muitos dos meus problemas, para ser sincera, e muitas das minhas dificuldades. Se precisares de um amigo verdadeiro, de uma vida melhor e de algo novo — como um novo começo — salva alguns cães, e serás feliz.” Serhiy Morgunov — FTWP

"Acho muito bom que as pessoas finalmente compreendam que os cães são amigos e parceiros, e até talvez mais", disse.

Olha Kotlyarska, de 29 anos, gosta de salientar que, por causa da guerra, ela e o cão, Khvoya, tomam ambos antidepressivos.

Kotlyarska é advogada e ajuda nas investigações sobre alegados crimes de guerra russos na Ucrânia. Khvoya é uma mistura de pastor que nasceu em Avdiivka e foi cuidada por tropas ucranianas até que voluntários a levaram para um lugar seguro em Janeiro de 2024, juntamente com os seus irmãos. A Rússia tomou o controlo de Avdiivka pouco depois.

A adaptação de Khvoya a uma vida mais pacífica em Kiev nem sempre foi fácil.

"No início, ela tinha medo de tudo e de todos na rua", disse Kotlyarska. Com treino, medicação e amor, ela tem feito progressos lentos. "Ainda custa muito para ela não entrar em pânico, e é algo em que continuamos a trabalhar", afirmou Kotlyarska.

O cão mais triste de sempre

As forças russas tinham avançado na região de Zaporijjia​ e bombardeavam intensamente a cidade de Orikhiv no final de 2023, quando voluntários ucranianos lá chegaram à procura de um cão que lhes tinham pedido para encontrar e resgatar. Então, um outro cão preto, esfarrapado, correu à frente do carro.

Os voluntários repararam que ele estava doente. Perseguiram-no até uma cave, onde encontraram soldados ucranianos a protegerem-se dos ataques russos. Os soldados ajudaram a colocar o cão numa caixa e, entre as rajadas de artilharia, os voluntários fugiram com ele.

De regresso a Kiev, Kateryna Lytvynenko, de 37 anos, viu uma publicação de um abrigo com fotografias do "cão mais triste de sempre". A conselheira de direitos humanos da Save the Children já tinha acolhido vários cães, incluindo um que o pai adoptou. Queria ter um seu e esperava encontrar um da sua região natal de Zaporijjia.

Kateryna Lytvynenko com o Marko. Lytvynenko, natural da cidade do sudeste Zaporizhzhia, dedica grande parte do seu tempo a angariar fundos para animais abandonados durante a guerra Serhiy Morgunov — FTWP

Quando o conheceu, chorou. Ali estava aquele cão abandonado, da linha da frente perto de onde ela cresceu, com o pêlo cortado e olhos castanhos tristes a implorar-lhe um lar. Levou-o para casa no dia seguinte e chamou-lhe Marko.

Uma semana depois da adopção do Marko, nasceu uma cadelinha castanha muito pequena na mesma cidade, no Natal. Os voluntários levaram a cadela para Kiev, onde chegaram tantas candidaturas para a adoptar que "era como tentar arrendar um apartamento num local privilegiado no centro de Kiev", recordou Dmytro Kustov, de 29 anos, que acabou por ser o escolhido.

Nascida num lugar desolado, Kari, que Kustov chama a sua "raposinha esperta e astuta", agora frequenta todas as aulas de alongamentos do dono e tem um guarda-roupa de roupas e botas de Inverno em miniatura.

"Os nossos valores morais"

Durante três anos, o socorrista de combate Roman, de 33 anos, viu todo o tipo de animais de estimação — cães, gatos, cavalos, vacas, até avestruzes e uma tartaruga — abandonados ao longo da linha da frente. Um cão de que a sua unidade cuidou durante seis meses morreu ao pisar uma granada.

Por isso, quando foi destacado para a região russa de Kursk, em Agosto passado, e encontrou um cão tricolor e peludo a encolher-se num jardim abandonado, Roman — que só pode ser identificado pelo primeiro nome por continuar no activo — receou ter de passar novamente pela dor de perder um cão de guerra.

Mas quando enviou fotografias à sua companheira, Nadiia, ela disse-lhe que aquele cão só podia ter um lar: com eles.

O subcomandante da companhia de Roman, que já tinha adoptado dois gatos, autorizou que o cão permanecesse com a unidade até que pudesse ser levado para junto de Nadiia.

Leo Serhiy Morgunov — FTWP

Inicialmente, os soldados deram ao cão o nome de Sudzhyk, por Sudzha, a localidade russa que a Ucrânia tinha tomado durante a operação. Mas, quando o cão foi viver com Nadiia, longe da frente de combate, ela deu-lhe um novo nome: Leo.

Roman sente orgulho ao ver como os soldados ucranianos tratam os animais que encontram — libertando-os das correntes, alimentando-os, dando-lhes abrigo. “A forma como tratamos os animais é um indicador do desenvolvimento da sociedade, um reflexo dos nossos valores morais”, disse.