Ele era o menino Eduardo de Sacavém. Aviava copos de vinho e servia refeições na taberna do pai, a Casa do Bacalhau, ali mesmo em frente à antiga Fábrica da Loiça. À hora de almoço, chegavam os operários. Pediam para aquecer as marmitas no fogão grande da mãe. Pela madrugada, apareciam os engomadinhos e as mulheres bem vestidas - e ele de olhos em bico. Vinham do Casino Estoril e do Parque Mayer à procura do bacalhau, aquele que o pai conseguia arranjar junto da Intendência-Geral dos Abastecimentos. O miúdo registava os contrastes. Doze anos feitos e contrariado, Eduardo vai distribuir papéis na fábrica. Conhece artistas, aprende composição. Compra uma Rolleicord. Fotografa o escultor Armando Mesquita, fotografa a prima Laurita. Ali estão eles, na exposição "Eduardo Rapaz de Sacavém, fotógrafo do Mundo", que está no Museu da Cerâmica em Sacavém, no espaço da antiga fábrica.
Eduardo Gageiro, 79 anos, tem a vida cheia de pessoas. Pessoas que foi conhecendo nos jornais, como o Diário Ilustrado ou O Século. Ou nas viagens que fez.
Sala a meia-luz, queijo e um bom pão sobre a mesa, mostra os recantos da sua casa da Maçã, a cinco quilómetros de Sesimbra, onde passa uns dias por semana. É lá que guarda a história. É lá que a revela. Os retratos. O retrato de Sophia. Ali está ela junto à janela, parece pintada. Ela e a janela e o fumo. E os carrinhos de brincar de Miguel Sousa Tavares. As reportagens. Salgueiro Maia. O 25 de Abril. O dia que era para ser mas não foi, o dia que ainda tem de vir, diz.
Estava a dizer-me que acabaram de lhe prolongar o prazo de validade…
Periodicamente, eu tenho que ir ao IPO, tenho a chamada doença prolongada. Não percebo por que é que as pessoas não dizem a palavra cancro. É mais duro, sim, mas eu nunca a omiti. Quando soube que tinha um linfoma, abanei um pouco, mas depois pensei: ‘vamos lá resolver isto’. Também já tenho uma provecta idade, e eu não tenho a mania da eternidade, nem acredito em nada, nem em céus, nem em infernos. Aceitei a doença com naturalidade e decidi viver os últimos anos da minha vida da melhor forma que posso e que sei.
Quando soube que estava doente, decidiu fazer um livro, "Silêncios", e foi ao seu arquivo procurar fotografias de paisagens, sem pessoas, o que não é habitual em si.
Nessa altura, decidi fazer a minha despedida e fui para o arquivo procurar fotografias que transmitiam solidão. Sentia-me só. Psicologicamente. Fiz algumas provas, fiz umas ampliações e tentei dar uma sequência cinematográfica ao tal livro, uma coisa que o José Cardoso Pires me mostrou. Ele ensinou-me a fazer um livro como se se tratasse de um filme, ora suave, ora alto, ora baixo, acabando em força. Trata-se de contar uma história. É algo que não pode feito de uma forma cronológica. Não funciona. Tem que se parar ao fim de um determinado número de fotografias, colocar um texto. Na altura, eu estava aflito. Andava a tomar umas 300 cápsulas, a fazer quimioterapia, quase caía, e não queria andar de bengala... Passados seis meses, fiz uma nova TAC e, num desses dias, a minha filha, que é da área de farmácia, diz-me, eufórica: ‘parabéns, telefonaram-me a dizer que te safaste’. ‘Safei-me?! Ora conta lá…’. Então, tive de alterar o final do livro. E esta é a história deste livro, feito de fotografias originais, passadas a sépia, uma a uma. E eu que não uso luvas. Um dia, apareço no IPO com as unhas todas castanhas, e dizem-me: ‘você é doido, isso passa tudo para dentro de si’. Piorei. Mas safei-me.
Safou-se e safou-se bem, anda sempre com projectos.
A médica diz que isso também ajuda muito. Se eu tivesse um espírito derrotista, estava tramado. Agora tenho um "site" e estou a organizar grupos de seis fotografias, assinadas, com certificado. São séries temáticas. Estão agrupadas por temas: 25 de Abril, Árvores, Iraque, Timor e Chuva. Gostava que as pessoas tivessem fotografias minhas. E, à parte disso, preciso de dinheiro. Tenho 400 euros de reforma, consigo sobreviver porque edito livros e vendo fotografias.
Estamos agora no Museu de Cerâmica de Sacavém e foi aqui que tudo começou, na antiga Fábrica de Loiça.
Se eu não tivesse nascido em Sacavém, se eu não tivesse contactado tão intensamente com os operários e, posteriormente, com os grandes artistas, eu teria tido, certamente, outra profissão. Eu morava aqui mesmo em frente, o meu pai tinha ali um estabelecimento, a chamada Casa do Bacalhau, que servia pequenas refeições e vendia vinho a copo. Quando acabei a escola primária, eu queria ir para o liceu, e o meu pai logo me disse: ‘és doido, ficas aqui ao balcão e, quando tiveres 12 anos, vais para a Fábrica de Loiça’. Fiquei a aviar copos e a servir à mesa. Detestava, mas gostava das pessoas. Andava ao colo dos operários, havia uma ligação quase umbilical. Eu era o menino Eduardo. Eles adoravam-me.
Ainda assim, quando vim trabalhar para a fábrica, fiquei muito triste. Eu era paquete, andava de secção em secção a distribuir papéis. Ao mesmo tempo, comecei a contactar com grandes artistas – o José Ribeiro, o Álvaro Pedro Gomes, um pintor decorativo fantástico, e o Armando Mesquita, que era escultor. Ele simpatizou comigo, começou a ver as fotografias que eu fazia com a máquina do meu irmão e, depois, ensinou-me composição. Um dia, ele foi ter com o meu pai e disse: ‘Ó senhor Gageiro, então não compra uma máquina ao rapaz?’. E lá fui eu à J. C. Alvarez comprar a minha primeira máquina, uma Rolleicord. Vim de lá, numa camioneta de carreira, todo inchado e sempre a disparar. A máquina tinha um estojo de cabedal, mesmo cabedal, com aquele cheirinho, tenho a impressão de que ainda está aqui, maravilhoso.
E ganhou logo uns prémios de fotografia.
Concorri ao concurso nacional dos empregados de escritório do distrito de Lisboa e ganhei com uma fotografia do Armando Mesquita a fazer escultura e a fumar. O fumo é sempre fotogénico. E ganhei com outra fotografia de uma prima minha de Angola, a Laurita, que vinha cá de vez em quando e levava-me a passear. Fotografei-a no Convento de Cristo, uma fotografia pirosa, mas muito bonita por causa da luz. Foi canja.
À hora do almoço, eu via os velhos operários que pediam à minha mãe para aquecer as marmitas no fogão imenso que ela tinha. Às quatro da manhã, apareciam os tipos engomadinhos para comer o bacalhau. Eu queria registar esses contrastes.
Como é que começou a fotografar?
Quando comecei a conviver mais com os operários, achei que deveria registar determinados acontecimentos. Ou vidas, como a do pastor ou a do homem do rio Trancão. Eu gosto muito de pessoas. E sempre lidei com pessoas, desde pequeno. Na altura da guerra, tinha eu 12 anos, apareciam na tasca do meu pai, por volta das quatro da manhã, umas dezenas largas de pessoas que eu nem sabia que existiam – não havia televisão e o meu relacionamento era praticamente só com gente de Sacavém. Vinham do Casino Estoril e do Parque Mayer, era gente do jogo e do teatro, mulheres lindíssimas, muito bem vestidas, eu ficava com os olhos em bico. E até apareciam toureiros, lembro-me de um deles, muito famoso, o mexicano Gregório Garcia, que deu um capote ao meu irmão. Ou seja, por um lado, à hora do almoço, eu via os velhos operários, muitos deles descalços, que pediam à minha mãe para aquecer as marmitas no fogão imenso que ela tinha. E, às quatro da manhã, apareciam aqueles tipos engomadinhos para comer o bacalhau que não encontravam noutro sítio. E o meu pai conseguia arranjar comida para aquela gente toda.
Como é que o seu pai conseguia arranjar tanto bacalhau?
Não era fácil, estava tudo com racionamento, mas já havia corrupção na altura. Quem arranjava o bacalhau ao meu pai eram os tipos da Intendência-Geral dos Abastecimentos, aqueles que deveriam fiscalizar o açambarcamento. Eles é que o vendiam, sim. E havia um sargento que também vendia parte da carne que os soldados deveriam comer. Eu ia lá buscá-la com uma alcofinha. O restaurante do meu pai era famoso e estava sempre cheio. Ora era a fornada dos velhos operários, ora eram os tipos engomadinhos. Esse contraste entre os dois mundos chocou-me. Eram mundos tão separados. Revoltou-me. Eu queria ser fotojornalista para denunciar essas diferenças. Por outro lado, havia aí um grupo de Sacavém, jovens que já andavam na universidade e que eram muito evoluídos politicamente. Eu era miúdo e eles emprestavam-me livros de autores como Ferreira de Castro, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires e clássicos internacionais como Tolstoy, com o seu "Guerra e Paz". Dessas leituras que fiz, ficou uma ideia que me marcou para a vida: tu podes, assim tu queiras. Eu tinha um dossiê onde punha os meus pensamentos e esse está logo na capa.
Sempre foi muito determinado, persistente ou mesmo teimoso…
Fui sempre um tipo que queria saber mais. Também tive sorte. Houve um período terrível, durante o qual eu procurei ir para os jornais, mas havia uma espécie de máfia que não deixava entrar lá ninguém. Era um grupo de fotógrafos que trocava fotografias entre si e usava a técnica maquiavélica, a de nunca deixar entrar no seu círculo tipos melhores. Tipos que poderiam mostrar a mediocridade dos que já lá estavam. Nunca leu "A Arte da Guerra" (Sun Tzu) e "O Príncipe" (Maquiavel)? Fotógrafos muito bons, como os da família Novais, nunca entraram para os jornais. Eu estava no Diário Ilustrado, mas mandavam-me ir para o laboratório revelar as fotografias dos outros. Estava triste, quis vir embora e voltar para a fábrica. Um dia, telefonam-me, lá fui eu para o jornal – que tinha um suplemento literário feito por grandes intelectuais e professores universitários. Fui fotografar o Ferreira de Castro. Fiquei a tremer. Eu sabia que não queria fazer fotografias iguais aos outros, com a pessoa sentada e a fazer gestos. E eu já tinha visto muitas fotografias, mandava vir uma revista da Argentina, concorria a concursos e recebia os catálogos. Havia tipos fantásticos a nível mundial. Muitos pseudo-intelectuais da fotografia diziam que esses tipos não passavam de amadores. Amadores são os tipos da fotografia conceptual, aqueles que gostariam de ter sido fotojornalistas e não tiveram pedalada para isso. A maioria deles faz 20 ou 30 rolos para conseguir uma fotografia gira. O que é difícil é o fotojornalismo. É o instante.
São coisas diferentes.
Ainda há uns dias, num debate no Porto, criei uma grande celeuma, mas tive a frontalidade de dizer que, para mim, a fotografia é o instante, não é a encenação. O fotojornalismo é, para mim, muito mais difícil e tem muito mais a ver com a pureza da fotografia.
Mais uma vez, são registos diferentes, com objectivos diferentes.
Sim, a minha opinião é discutível, mas eu considero que o expoente máximo da fotografia é o fotojornalismo. Para mim, é. No tal debate, picaram-me tanto e falaram-me da exposição do Jorge Molder sobre cadeiras. Ele fez um livro chamado "Um dia cinzento". E eu disse: ‘mas o que é que toca, à maioria das pessoas, uma exposição sobre cadeiras?! São fotografias técnicas’. Um fotógrafo de arquitectura ou um fotógrafo normal faz isso.
Estive preso um mês e tal. Eu fotografava um Portugal que 'eles' não queriam mostrar. No interrogatório, perguntaram-me: 'por que é que só fotografa pessoas, principalmente humildes, quando temos paisagens tão bonitas?'
Mas não consegue encarar a fotografia conceptual como arte ou como outra forma de expressão?
E consegui ser ainda pior – há pessoas que ficaram a odiar-me. É-me indiferente –, e disse: ‘esse tipo de fotografia é promovido por um grupo de críticos que estão ‘feitos’ com as galerias’.
Não tem um bocadinho a mania da "conspiração"?
Não, não, não. Senti isso desde que comecei a ter alguma projecção. Percebi que havia tipos que queriam pôr-me o pé em cima, mas sem argumentos. Poderia citar nomes, mas não vou fazê-lo. Uma vez, uma pessoa deu-me a entender que eu não estaria devidamente actualizado. Vou regularmente às livrarias, tenho uma colecção de centenas de livros de fotografia, vou às exposições…, simplesmente ninguém me convence de que uma coisa é boa quando não há justificação para tal. E, depois, leio as críticas a dizerem que aquilo é excelente. E, quando se trata de uma exposição de um fotógrafo não conceptual, isso não acontece. Aqui há uns anos, houve por cá uma exposição de um grande fotógrafo mundial, Yousuf Karsh, que fez aqueles retratos do Fidel – eu não consegui fazer, fiquei muito triste. Conheci o Fidel Castro através do embaixador de Cuba em Portugal, e estava na ânsia de o fotografar. E o próprio Fidel disse-me: ‘até me vais tirar as fotografias para o bilhete de identidade’. Eu convenci-me de que era verdade. Fui a Cuba, estive no Palácio da Revolução, mas não consegui fotografá-lo. ‘Tens que voltar...’, disse-me. Ele aldrabou-me. – Bom, o Karsh também fez a melhor fotografia do Churchill, fotografou a Virginia Woolf, fotografou as grandes figuras mundiais. E ele fez uma exposição em Portugal e os críticos disseram que aquelas fotografias eram vulgares. Fiquei furioso.
Mas não há nenhum fotógrafo conceptual de que goste?
Não. Não acho graça nenhuma. É moda, são as galerias. É uma fábrica, gosto mais da nova geração de fotojornalistas portugueses. O nosso azar é estarmos na ponta da Europa.
Falávamos há pouco que o seu interesse pela fotografia vem da vontade de captar os instantes e de denunciar as injustiças.
Toca-me os sentimentos das pessoas. As suas expressões. A alegria, a tristeza, situações difíceis ou felizes. O instante é captar isso numa imagem. Nada é mais sublime do que uma imagem só.
"A máquina fotografia é a minha arma. Tanto o Eanes, como o Cavaco Silva, quando me vêem, dizem: ‘Sempre com a máquina, sempre com a máquina’. Eu respondo ‘ó senhor Presidente, já viu algum polícia sem pistola?". Lembro-me da história que me contou dos assaltantes….
Sim, sim. Há dois anos, numa rotunda em Moscavide, às seis da tarde, e com o trânsito muito compacto, um carro encosta-se ao meu. Fecha o sinal e saem três mânfios desse carro. Parecia um enxame de abelhas. Era Verão, eu tinha os vidros abertos, o carro estava destrancado. Eu tinha ido levantar cheques, que estavam no tablier… Ainda levei um murro na cabeça, mas consegui trancar a porta e fechar os vidros. Eles metem-se no carro deles, o sinal abre, mas ainda consegui fotografá-los. Apanhei-lhes a cara. Fui à polícia e lá estavam eles, na fotografia. A máquina safou-me.
É muito persistente ou teimoso mesmo, como já percebemos. Em muitas das suas histórias, essa persistência está lá. Foi o fotógrafo que deu a conhecer os acontecimentos dos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique.
Desistir não é o meu lema, se calhar por isso é que ainda eu estou cá. Bom, isso é a Maria Gomes da Silva e o IPO que me safam.
Um dia, eu disse a uma grande figura portuguesa: 'temos de nos revoltar'. Diz-me ele: 'os portugueses têm capilé nas veias'. Água e adoçante. E depois disse um palavrão.
E consegue desarmar as pessoas. Para o trabalho "Revelações", conseguiu fotografar António Champalimaud com umas luvas de boxe, Ramalho Eanes com uma lupa de relojoeiro e Cavaco Silva com um cão ao colo.
Quando pensei fazer o retrato de Champalimaud, falei com as pessoas que lhe eram mais próximas. Uma dessas pessoas foi Francisco Pinto Balsemão. ‘Estou a vê-lo como Tio Patinhas’, disse-me. Mas eu pensei ‘este homem tem uma particularidade, ele nunca perde, é um lutador’. Ele era magrinho, pau e osso, baixinho, mas era um homem de luta. Então, tive uma ideia maluca e levei comigo, dentro de um saco de plástico transparente, umas luvas de boxe. Coloquei o saco em cima da mesa, fui fazendo fotografias e alimentando o ego dele. ‘O senhor ficava bem como um boxeur…’. E ele: ‘com esta figura?’. E eu: ‘ó senhor Champalimaud, o que interessa é a parte mental e o senhor é um homem de inteligência rara’. E era verdade. Quando há um pacto com um fotografado, não posso atraiçoá-lo. Ele pegou nas luvas. ‘Já agora, calce as luvas’. Ele calçou. Depois, nessa noite, eu tinha um recado urgente dele, queria falar comigo. Deve ter contado aos filhos… Revelei logo as fotografias, apareci lá em casa e falei com a mulher dele, uma simpatia. Eu disse: ‘veja, o sr. Champalimaud está fantástico…’ . E pronto.
Como seleccionou as pessoas?
Fiz uma lista de nomes e o José Cardoso Pires ajudou-me. As pessoas eram colocadas num fundo preto, propositadamente para demonstrar que estavam ali a fazer um papel ou a mostrar uma outra face. Eu deveria ter descrito o porquê de terem sido fotografadas daquela forma. "Mea culpa". No caso do Ramalho Eanes, sempre o considerei o Presidente da República (Eduardo Gageiro foi fotógrafo oficial do antigo PR) uma pessoa excelente e, à parte disso, era alguém de muito rigor. E eu sabia que ele coleccionava relógios. Então, levei comigo uma lupa de relojoeiro. Em relação a Cavaco Silva, pensei fotografá-lo como um Professor de York. Mas chega um assessor que me diz que, afinal, ele já não queria. Que preferia ficar como primeiro-ministro. E, então, foram buscar uma central telefónica. Pensei que isso seria ridículo e piroso. O chefe de segurança tinha dito que ele gostava muito de um cão. O motorista foi, então, buscar o cão, e Cavaco Silva, com alguma relutância, pôs o cão ao colo. Depois, quis ver as fotografias, e escolheu aquela. Um dia, eu estava numa inauguração e ele, muito cordial para mim, disse ‘este homem pôs-me um cão ao colo’.
Quebrou-se o gelo.
Das primeiras vezes que estive com ele, fiquei horrorizado. Eu estava na antiga revista Sábado, o (Joaquim) Letria foi entrevistá-lo e era preciso fazer uma capa. Cavaco Silva estava muito tenso, e eu não conseguia fazer uma boa fotografia. E contei-lhe uma história: ‘sabe, sr. primeiro-ministro, há um fotógrafo famoso, Yousuf Karsh, que fotografou o Churchill. O Churchill tinha aquela pose sempre igual, de charuto. Então, de repente, o Karsh tira-lhe o charuto, o Churchill faz uma cara de leão e eis que surge, assim, aquela que é a sua melhor fotografia’. Sabe o que é que Cavaco Silva me disse? ‘Eu não sou o Churchill, não fumo charuto e quero ir almoçar’.
Se tivesse que escolher uma fotografia, voltaria à de Salgueiro Maia, quando ele pensava que tinha vencido o 25 de Abril. Mas, simplesmente, eu gostaria que houvesse outro 25 de Abril.
Dessa vez, a sua capacidade de persuasão não funcionou. Sempre foi muito perseverante e cheio de truques para conseguir os objectivos. Conseguiu, por exemplo, enviar imagens de Portugal para o estrangeiro e chegou a estar preso por causa disso…
Pouco tempo. Um mês e tal. Tenho uma admiração profunda por muitos tipos de Sacavém, e desse Portugal fora, que foram presos só porque tinham ideias diferentes. Eu não fiz nada de especial. Simplesmente, os tipos que eram do governo não gostavam das minhas fotografias. Eu fotografava um Portugal que eles não queriam mostrar. No interrogatório, perguntaram-me: ‘por que é só fotografa pessoas, principalmente pessoas humildes, quando nós temos paisagens tão bonitas?’. Eu enviava muitas fotografias lá para fora. Mostrava cargas policiais e manifestações de estudantes. Algumas delas iam através da Associated Press e, nesse caso, a polícia não tinha provas de que era eu o autor. Fui apanhado quando comecei a enviar fotografias para concursos na RDA – está no meu processo na Torre do Tombo: ‘Fulano tal ganhou um concurso na RDA com fotografias na Nazaré, dando uma má imagem de Portugal’. Eram bufos que me denunciavam, e eu conhecia muitos deles. Estive preso já na era Marcelo Caetano e o Rui Patrício, que era ministro dos Negócios Estrangeiros, costumava fazer um almoço mensal com a imprensa estrangeira para demonstrar que já não existia um Portugal salazarista. E, então, o homem da AP e os colegas estrangeiros perguntaram porque é que eu estava preso. Foi a minha sorte.
Vai ter de me recontar como é que eternizou Salgueiro Maia.
Eu trabalhava no jornal O Século, onde havia um grupo muito politizado. Nesse dia, às seis da manhã, ligaram para minha casa e disseram: ‘hoje é que é, vai já para o Terreiro do Paço e leva os rolos todos’. Lá vou eu, chego a uma das entradas, um dos soldados diz: ‘não pode entrar’. Usei um truque e disse: ‘desculpe, eu sou amigo do comandante, leve-me ao comandante’ e eu nem sabia quem era o comandante. Era tudo malta muito nova. Chego lá, apresento-me: ‘eu chamo-me Eduardo Gageiro’ e, do outro lado, ouço: ‘eu chamo-me Salgueiro Maia’. Como O Século Ilustrado e a Flama eram as bíblias da altura, ele conhecia o meu nome. ‘Pode andar comigo’, disse-me. Assisti a tudo, a todas as negociações.
É conhecida a sua fotografia ao major Pato Anselmo no 25 de Abril. Na altura, ele disse-lhe: ‘se me fotografas, eu mato-te’. Não o matou, claro. Entretanto, quando o Eduardo Gageiro ficou doente, descobriu o número dele, telefonou-lhe para lhe pedir desculpa e combinaram almoçar. "Espero que ele me perdoe antes de morrer, tenho de cumprir a minha palavra", disse-me há dois anos. Entretanto, já almoçaram?
Não, ainda não fui lá. Nessa altura, eu estava mesmo a morrer, depois melhorei e esqueci-me. Está mal. Tenho de lá ir. Quero fotografá-lo. Um amigo meu filmou-me a fazer o telefonema quando combinei o tal almoço. Esse meu amigo estava a fazer um documentário que se chama "As coisas não acontecem por acaso". Tiago Cravidão. Mas o Pato Anselmo não se deixa entrevistar, está muito dorido, foi muito mal tratado. Realmente, não é justo, também há-que respeitar os vencidos. Ele diz que foi marginalizado na tropa, que andou a fazer de jardineiro, que perdeu tudo, que se viu aflito para criar os filhos. Pelo menos, é a versão dele.
"Com todo o respeito pelos meus filhos, já lhes pedi desculpa, mas o dia mais feliz da minha vida foi o 25 de Abril", costuma dizer.
Foi, foi. Os meus filhos sabem. Ainda fiquei a admirar mais aquele homem, o Salgueiro Maia. Aquele homem deu a sua vida. As pessoas não imaginam as decisões que ele tomou sozinho, por exemplo, no Largo do Carmo. Ele, com duas granadas no bolso. A "Brigada do Reumático" fez-lhe tanto mal. Não podemos esquecer que os vencidos ficaram nas instituições militares.
Há dois anos, estava algo amargo, triste, e disse-me que, no dia mais feliz da sua vida, pensou ‘agora é que é. Mas não foi’.
A seguir ao 25 de Abril, fizeram-se imensas coisas boas, como o acesso à educação, e eu sempre imaginei que o progresso iria ser contínuo. A partir de certa altura, tudo começa a regredir. Não aceito que, em 2014, 40 anos depois do 25 de Abril, os filhos e os netos das pessoas que contribuíram tanto para haver uma mudança tenham um futuro tão incerto. Não posso conceber que existam crianças com fome. Em contrapartida, nunca, em tão pouco tempo, se criaram fortunas tão grandes. A partir de um certo escalão, ninguém é condenado. Os tipos super-ricos conseguem escapar sempre. E os grandes escritórios de advogados manobram tudo. Quando dizem que um advogado é muito bom, eu diria que não olha a meios para chegar aos fins. Só porque é rico, safa-se? Não pode ser. Na Islândia, o ex-primeiro-ministro – Geir Haarde – foi considerado culpado pelo crime de negligência. E os banqueiros. As pessoas têm de ser responsabilizadas, mas não são. Por isso é que este país está como está. Ninguém é condenado, só o homem que rouba uma lata de sardinha.
Nestes quarenta anos, o que poderíamos ter feito melhor?
Um controlo dos sinais exteriores de riqueza.
Diz-se, por vezes, que faltou a consciência, nestes 40 anos, e transversalmente à sociedade portuguesa, de que ‘o Estado somos nós’. Que temos direitos, mas também deveres. Falhou essa consciência?
De acordo, mas, se calhar, os mais pobres e as pessoas da classe média foram os que mais contribuíram para o Estado Social. Os tipos das grandes fortunas, e que enriqueceram não se sabe como, terão contribuído muito menos. Fico espantado com as fortunas fabulosas. Aquilo que vou sabendo é através da comunicação social, da pouca que ainda existe, porque muitas notícias são controladas pelas agências de comunicação, que fazem autênticos branqueamentos de imagem. Eu só queria que essas pessoas prestassem contas ao país.
É um homem de esquerda. Mais radical, agora?
Sempre fui um homem de esquerda, mas não sou radical. Tem de haver justiça social para não existir um fosso tão grande entre ricos e pobres. Mas não quero filiar-me em nenhum partido político, para poder ser mais independente. Já me convidaram. Pessoas que eu admiro. Comparado com muitas pessoas que deram a sua vida, eu não fiz nada, fiz muito pouco. Mas conto-lhe uma história que se passou com o Álvaro Cunhal e que foi, para mim, o prémio mais gratificante que tive. Eu sempre dei fotografias ao Partido Comunista para os cartazes – no Século Ilustrado, havia una grande célula de esquerda –, e já tinha fotografado o Cunhal na série "Retratos". Havia uma empatia entre nós. Um dia, estava ele já muito doente e só via de um olho, fala-me a Olga, a secretária: ‘Eduardo, o Álvaro quer falar contigo’. Eu fiquei nervoso. Lá fui. E ele: ‘Gageiro, quero agradecer pessoalmente o seu contributo para que Portugal fosse melhor, eu sei o que você fez, sei que mandou fotografias lá para fora. Quero mostrar-lhe a minha gratidão’. Eu não sabia o que dizer, chorava como uma criança perante um homem daquela dimensão. Um homem que podia ter sido tudo aquilo que quisesse neste país. Foi advogado com 20 valores, os professores dele eram tipos da situação, e ele era filho de um homem rico. E muda toda a sua vida por uma causa. E, por isso, ele dizer-me aquilo que me disse foi o melhor prémio da minha vida… Ainda fico comovido, custa-me dizer isto. Um homem daquela dimensão, agradecer-me? Isso dá força.
Gostava mesmo é que houvesse bem-estar para todas as pessoas. O mundo é cruel e o homem é o pior inimigo do homem. Adoro ver documentários sobre animais, são muito mais carinhosos, são mais humanos que os humanos.
Parece mesmo amargurado, foi sempre assim?
Não, mas sou cada vez mais assim.
Portugal está mais injusto hoje do que há 40 anos?
Sim. Atenção, eu não sou radical, se calhar, a via comunista também não resolvia o problema, era muito utópica. Simplesmente, deve existir um meio-termo para que haja mais justiça social.
De que forma é que hoje o Eduardo Gageiro faz hoje a sua justiça?
Eu sou uma formiga ao pé de um dragão. O que posso fazer? Posso falar. Mas não resolvo nada. Digo constantemente que estamos a ser governados como frangos de aviário. Estes tipos que nos governam não têm um passado e espero que também não tenham futuro.
Disse-me que passou a ter pior feitio.
Talvez, eu fico muito revoltado com o que vejo. Revoltado com pormenores. Com o homem do Pingo Doce que paga os impostos na Holanda. Deixei de ir ao Pingo Doce, procuro a maioria das coisas no pequeno comércio. Temos muitas razões para estar revoltados. E agora mais do que nunca. Um dia, eu disse a uma grande figura portuguesa: ‘temos de nos revoltar’. Diz-me ele: ‘os portugueses têm capilé nas veias’. Água e adoçante. E depois disse um palavrão. Houve várias manifestações contra o Governo, e mesmo assim eles não se vão embora?
Qual a fotografia que lhe falta fazer?
Sei lá. Gostava de ter uma ideia, que ainda não concebi, de fotografar o Passos Coelho o mais parecido possível com o Salazar. O comportamento dele lembra-me o do Salazar, é ‘o quero, posso e mando’, não ouve ninguém. Estes milhões de pessoas que vão para a rua, não têm voz? Estou convencido de que, noutro sistema, estes homens seriam ditadores em potência. Se não houvesse democracia, seriam ditadores em potência. O que vale é que há democracia. Mesmo em democracia, tentam comportar-se como pequenos ditadores.
Se tivesse que escolher uma fotografia sua, a que mais lhe diz…
É difícil, mas voltaria à de Salgueiro Maia quando ele pensa que, na verdade, tinha vencido o 25 de Abril. Mas, simplesmente, eu gostaria que houvesse outro 25 de Abril.