Em 2024, 1.238.760 pessoas foram às urnas, votaram, mas os seus votos não foram representados no Parlamento. São votos em partidos que não conseguiram eleger representantes ou em partidos que receberam menos votos do que o necessário para se traduzirem em mandatos adicionais – em ambos os casos, são intenções que não alteraram em nada o resultado eleitoral nem o quadro parlamentar.
João Miguel Telhada, professor de Estatística da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e Mariana Fortes, aluna de mestrado, analisaram os dados das últimas legislativas e traçaram cenários matemáticos em que conseguiriam aproveitar mais votos do que os usados no ato eleitoral anterior. Mantendo o método de Hondt como base, mas aplicando novos critérios, os resultados deste trabalho mostram que os partidos mais pequenos poderiam sentar mais deputados no parlamento.
Muito se tem falado sobre o voto útil e foi um dos temas centrais de alguns debates televisivos, principalmente com os candidatos das maiores forças partidárias do país – Pedro Nuno Santos apelou, no frente-a-frente com Rui Tavares, com Mariana Mortágua e com Paulo Raimundo, a que os votos à esquerda se concentrassem no PS e Luís Montenegro pediu à direita que fizesse o mesmo com o PSD, ao debater com André Ventura e com Rui Rocha. A ideia: reduzir o desperdício onde os votos em partidos mais pequenos têm menos probabilidade de eleger, uma vez que nem todos os concelhos têm o mesmo peso nas urnas.
Há regiões que elegem apenas dois mandatos, como Portalegre ou os dois círculos da emigração (Europa e fora da Europa), e outras que elegem três, como Beja, Bragança, Guarda e Évora. Em contraponto, Lisboa elege 48 deputados e o Porto 40 — números que têm em conta a proporção de eleitores inscritos em cada círculo e que são revistos a cada eleição legislativa pela Comissão Nacional de Eleições.
Se pensarmos num eleitor que vive numa das regiões com menos peso nos círculos eleitorais e que se identifique com as ideias de um partido mais pequeno, que motivação terá para votar num partido em que dificilmente o seu voto poderá eleger alguém? Deixará de ir às urnas? Vota AD ou PS, com pouca convicção, apenas para o seu voto poder fazer alguma diferença?
Entre mapas, tabelas e muitos dados, João Miguel Telhada e Mariana Fortes foram navegando entre os números, sem nunca esquecer o carácter sociopolítico que compõe um método eleitoral. Elaboraram cenários considerando os votos que não foram usados e apresentaram inúmeras combinações parlamentares. Mais justas, mais representativas? Em algumas hipóteses, certamente não; noutras, talvez sim. Vamos a contas.
Atualmente, são eleitos 230 deputados (226 mais quatro nos círculos da emigração) e o que estes matemáticos propõem é a criação de uma volta de compensação – não seria necessária nova ida às urnas e os resultados seriam provavelmente conhecidos ainda na noite eleitoral. Em que consistem estes cenários e como seriam distribuídos os votos que restaram?
O primeiro cenário seria um sistema em que se consideravam todos os círculos como um único. Ou seja, juntava-se todos os votos em defeito ou excesso a nível nacional e distribuía-se pelos partidos. “Isso permitia reduzir substancialmente os votos desperdiçados, mas em termos sociopolíticos talvez não fizesse tanto sentido”, explica Mariana Fortes, autora do estudo. Considera este cenário “extremo e apenas académico, para servir como base comparativa”, alertando que “haveria o risco de se perder representatividade regional”. E, complementa João Miguel Telhada, “existiria uma grande probabilidade de serem eleitas apenas pessoas de Lisboa e do Porto”.
O segundo cenário, mais exequível, propõe manter o cálculo inicial dos 216 mandatos através do método de Hondt, deixando de fora dez mandatos para uma segunda volta baseada nos votos que hoje são descartados. “Nós sabemos quantos votos desperdiçados houve por círculo e por partido, e temos mandatos para atribuir. A questão agora é: como fazemos essa atribuição dos mandatos da segunda volta com os votos desperdiçados?”, explica João Miguel Telhada. Saber como calcular e distribuir estes lugares é o desafio que os académicos abordam nos cenários seguintes, tentando aproximar a Matemática a uma solução politicamente mais justa.
"É natural que os grandes partidos tenham mais votos de base, mas os outros têm mais em termos proporcionais"
“Aquilo que vai acontecer é que alguns partidos que não iriam eleger caso não houvesse essa volta de compensação passam a eleger, mas os grandes também, ou seja, em dez, o PS pode ir buscar dois, a AD pode ir buscar dois, mas tipicamente os outros vão buscar um bocadinho mais porque há um maior equilíbrio nos votos desperdiçados. É natural que os grandes partidos tenham mais votos de base, mas os outros têm mais em termos proporcionais”, explica o professor.
Neste cenário, mantém-se a volta de compensação, mas atribui-se os dez mandatos novamente aos círculos que já existem – 22 no total: 18 regiões continentais, duas das regiões autónomas e mais duas da emigração (dentro e fora da Europa).
Numa das opções, ordenou-se os 20 círculos por ordem de votos desperdiçados e começaram a atribuir mandatos dessa segunda volta aos círculos com mais votos não usados e assim sucessivamente.
"Não podemos ignorar que em Lisboa houve 500 mil votos desperdiçados"
Noutra abordagem, em vez de se considerar o número absoluto de votos desperdiçados, ponderou-se o uso dos votos relativos. “Há diferenças”, explica Mariana Fortes: “Apesar de alguns círculos, como Lisboa, terem muitos votos desperdiçados em termos absolutos, a percentagem em relação ao total de votos iniciais é menor do que noutras regiões.” Por exemplo, Portalegre teve quase metade da percentagem de votos não usados. João Miguel Telhada acrescenta: “Não gostamos de analisar apenas em termos absolutos. Em termos relativos temos outra perceção, mas não podemos ignorar que em Lisboa houve 500 mil votos desperdiçados. Não é fácil decidir como é mais justo avaliar estes números.”
Estas fórmulas e números servem para explicar que, nas contas finais de uma eleição, o valor de um voto não é igual em todo o país: quem vota em Lisboa tem, na prática, um peso diferente de quem vota em Portalegre. “Existe o rácio entre o número de votos e o mandato atribuído e esse rácio não é constante, portanto, não contam exatamente o mesmo”, explica ao SAPO o docente de Estatística.
“Nestes cenários, o milhão e duzentos mil votos desperdiçados passaria para 400 mil”
Todos estes cenários servem para tentar encontrar um modelo mais justo: “Se a segunda volta for feita a nível nacional, podemos estar a perder representatividade regional. Se o rateio for feito nos círculos eleitorais, também pode haver uns que estão a perder relativamente a outros”, explica João Miguel Telhada e continua: “O objetivo aqui não é emitir nenhuma opinião e nenhuma prescrição de como deve ser feito, mas pareceu-nos que, deixando dez, 15, 20 mandatos à parte para uma segunda volta, os efeitos são muito assinaláveis e podem servir para ter um efeito positivo mesmo na perceção dos eleitores.”
Numa última hipótese e numa “proposta mais diferenciadora” – primeira volta igual aos dias de hoje, mas guardando os tais dez mandatos, propõe-se uma alteração aos círculos eleitorais atuais para a segunda volta.
“A ideia é agrupar círculos eleitorais, de acordo com algumas regras, para que se possa obter um equilíbrio entre a representatividade e o círculo único – achamos que não perdemos a representatividade se juntarmos um pouco alguns círculos. Mantivemos a Madeira e os Açores como círculos sempre individuais, mas ao nível do território continental fizemos várias agregações”, explica Mariana Fortes que demonstra as várias possibilidades de megacírculos.
Estes megacírculos teriam um número o mais equilibrado possível de votos desperdiçados, mas há várias combinações: “Tanto pode ser dividir o país a meio, como parti-lo em quatro ou em mais partes.” Consideram sempre regiões fronteiriças, onde as preocupações e problemas das pessoas são mais partilhados. “Quanto mais agregamos os votos, menos vezes usamos o método de Hondt e menos vezes estamos a desperdiçar”, explica Mariana Fortes.
Os megacírculos acabaram por ser a resposta quase perfeita aos problemas que os cenários anteriores criavam e estes académicos acreditam que há um bom equilíbrio entre representatividade e menos votos desperdiçados.
Pelo mundo, há vários métodos eleitorais em vigor, os de maioria (quem tiver mais votos ganha), os proporcionais (como este método Hondt, o Saint-Lague ou outros em que se vota por ordem de preferência) e ainda há países que misturam ambos. Para estes académicos da Universidade de Lisboa, não faria sentido averiguar outras opções, mas tentar manter o maior número possível de fatores e ver o efeito de alterar apenas um deles.
Na verdade, há países que já utilizam métodos muito semelhantes ao proposto – acontece na Islândia e na Noruega. E por cá acontece também nas eleições regionais dos Açores, nas quais há um círculo regional de compensação que elege cinco deputados.
No ano passado, o Bloco de Esquerda entregou na Assembleia da República um projeto de lei que propunha a criação de um círculo de compensação de dez deputados, redistribuindo os mandatos atribuídos nos círculos do território nacional. Nas eleições passadas, segundo a proposta deste partido, o BE teria elegido mais dois deputados.
Já neste ano, há cerca de duas semanas, Rui Rocha, presidente da Iniciativa Liberal, voltou a trazer o tema à esfera pública, publicando na rede social X: “Cerca de 1,2 milhões de votos, 20,4% do total, foram desperdiçados nas últimas legislativas e não serviram para eleger nenhum deputado. Os territórios do interior são particularmente prejudicados e a IL tem combatido essa injustiça com a proposta de reforma eleitoral com introdução de círculo de compensação que tem esbarrado sempre na vontade de PSD e PS de manterem tudo na mesma.”
“Haveria pequenos partidos que passariam a ter representação ou reforçavam a sua participação”
No cenário proposto pelo BE, a IL até perderia um deputado, mas na maior parte dos cenários sairia beneficiada, tal como os outros pequenos e médios partidos. Mariana Fortes considera que, usando os cenários propostos, “haveria pequenos partidos que passariam a ter representação ou reforçavam a sua participação”.
Uma possível alteração no sistema poderia aproximar mais as pessoas da política? João Miguel Telhada antevê que seria interessante o estudo para uma eventual redução da abstenção, mas admite que a mudança, a ter de ser concretizada pelos partidos grandes, pode ser difícil. Ainda assim, projeta que estes poderiam “reforçar a sua credibilidade por atenderem a vontades sociais”. “Um partido grande até poderia perder alguns deputados com este método, mas, por exemplo, se anunciasse como proposta uma alteração à lei eleitoral numa campanha, até poderia ganhar votos”, antevê o professor.
Há muitos dados de eleições passadas para traçar cenários estatísticos. Mas há coisas que a Matemática ainda não consegue calcular: se soubéssemos que o nosso voto realmente contaria, continuaríamos a votar da mesma maneira? E como seria composto o Parlamento que tomará posse a 18 de maio? Ainda não será desta que saberemos.