O presidente da Comissão Nacional da Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, Alberto Caldas Afonso, reconhece que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) atravessa uma fase de escassez de recursos humanos, que impacta sobretudo a área da obstetrícia e ginecologia. Em entrevista ao Hora da Verdade, programa do PÚBLICO e da Renascença, defende a criação de um centro materno-infantil na península de Setúbal, semelhante ao que dirige a norte do país, no Porto, de forma a dar resposta às populações e a evitar que as mulheres grávidas continuem a atravessar a ponte para poderem ter os seus bebés nas maternidades de Lisboa. Este é um cenário que prevê como “muito residual”, caso avancem as medidas que o organismo que lidera propôs à tutela.
Entregou na semana passada ao Ministério da Saúde o plano de referenciação da actividade materno-infantil na área da ginecologia e obstetrícia. E iria fazer o mesmo esta semana quanto à pediatria. Estão os dois planos entregues? Já teve algum retorno do Governo?
Penso que é importante enquadrar todo o processo e, desde logo, dizer que Portugal está em quarto lugar a nível mundial, com as melhores políticas na área materno-infantil. Neste momento, a totalidade dos partos é num ambiente em que há segurança, qualidade e humanização do parto. Este é o ponto de partida, sendo que, de facto, Portugal está a atravessar dificuldades.
Desde há um ano, houve uma generalização em termos de organização em Unidades Locais de Saúde (ULS). Temos 39 ULS no país e nessas 39 ULS existem 39 serviços de urgência de pediatria e de ginecologia e obstetrícia. E é perante esta realidade e a escassez que temos de recursos humanos que as dificuldades são conhecidas.
Esta etapa de identificar a rede de referenciação no contexto nacional, conhecendo as particularidades do país, ainda não existia na área materno-infantil e vai ser importante para ajudar a reorganizar os serviços de urgência nesta área.
E tem informação se o Governo pretende pôr em prática esta nova rede? Irá haver concentração de urgências, vão ser fechados serviços?
São coisas diferentes. A rede, obviamente, sim (será posta em prática), porque é uma continuidade e, aliás, resulta de um protocolo estabelecido com a Ordem dos Médicos. A parte (do plano) da mulher foi entregue ontem (terça-feira) à senhora ministra e ao senhor director executivo do SNS. E vai ser enviada para discussão pública durante um mês.
Entre as medidas, consta também um novo incentivo aos profissionais de saúde, que já estava, aliás, previsto quando entregou um plano para esta área em Janeiro. Só que não saiu do papel. Em que é que consiste agora este incentivo?
Era importante percebermos onde é que estávamos, quais as razões que estavam a ter um forte impacto na redução muito grande de recursos humanos. Porque é que chegámos aí e que medidas seriam apropriadas para mudarmos este paradigma. Fizemos esse levantamento, entre 2017 e 2023, e o número de nascimentos no nosso país foi mais ou menos equiparável. Há uma diferença de 800 partos, o que não é expressivo. Só que há uma perda de recursos humanos dentro do SNS, neste caso de obstetras, significativa.
E conseguiu identificar as razões pelas quais há esta escassez?
Neste momento, existem inscritos na Ordem dos Médicos, nesta especialidade de ginecologia/obstetrícia, 1960 obstetras e ginecologistas. No SNS estão alocados 760.
Desses 760, mais de 40% têm mais de 50 anos, o que quer dizer que têm limitações, se assim o entendessem, para fazer urgência. É com esta redução do número de especialistas que o país tem de dar resposta a 39 serviços de urgência.
E é por isso que temos tido todas as semanas os serviços de urgência fechados?
É por isso que temos dificuldades, que são objectivas, porque formar um especialista nesta matéria demora 15 anos. A Ordem dos Médicos já fez um esforço brutal, já maximizou ao máximo aquilo que era possível em termos de formação. Mas demora 15 anos.
O que é que correu mal até agora?
Basicamente dois factores. Temos de perceber que a percepção da jornada de trabalho, a relação com o trabalho, a disponibilidade e o compromisso das gerações mais novas são diferentes dos da minha geração. E ainda bem. Temos de adaptar a dinâmica do trabalho a esta realidade. Este é o primeiro ponto.
De que forma?
Já vou explicar, quando falar dos modelos de incentivos. Importa dizer que os profissionais de saúde foram aqueles que mais sofreram nos últimos 30 anos de não-reposição do seu vencimento. E, durante muito tempo, as pessoas parece que tinham vergonha de o dizer.
No meu grupo mais alargado de amigos, por exemplo, tenho quatro amigos que estão no Supremo Tribunal. E, quando conto aquilo que ganho — estando eu no topo da carreira médica, como assistente graduado sénior e professor catedrático —, concluímos que é menos de um terço do que ganha alguém numa profissão equiparável.
Isto para mostrar que, de facto, houve uma não-reposição daquilo que é a dignidade com que devemos exercer esta profissão, que é de enormíssima responsabilidade e que implica, de facto, um estudo permanente. O conhecimento duplica a cada dois anos. E se eu não estiver preparado para isso, vou deixar de estar capaz de exercer a profissão com o estado da arte necessário a proporcionar a quem me procura as melhores orientações.
Esta foi uma questão que se colocou. A partir do momento em que houve alternativas, obviamente que as pessoas começaram a esvaziar o SNS.
Identificado esse problema, qual será o caminho?
Para situar no tempo, esta questão do encerramento de urgências começa a aparecer em 2020. Até aí, isto não acontecia. Há factores importantes para explicar esta grande escassez de recursos. Primeiro, se pegarmos em quatro hospitais, que, do meu ponto de vista, são porta-aviões — ou seja, grandes hospitais, com uma grande responsabilidade em termos de população e que tinham modelos de gestão e de remuneração diferentes, que foram encerrados, as conhecidas parcerias público-privadas (PPP) —, os hospitais de Loures, Amadora-Sintra e Vila Franca de Xira, estamos a falar em unidades que quase todas as semanas encerram. Aqui no Norte, o único que tem problemas é o de Braga.
Quando houve o encerramento das PPP, grande parte destes profissionais saíram. De Braga saíram mais de 17 obstetras e nos outros foi igual. De tal modo que os serviços ficaram super-reduzidos. E, de repente, perderam uma capacidade em termos de recursos humanos brutal, mas não perderam a responsabilidade assistencial e a missão que tinham. Aqui demonstra-se bem que o modelo de incentivo de remuneração, de valorização do trabalho, tem uma importância brutal.
Então, defende esse regresso às PPP?
Não é questão da PPP. Defendo um modelo de meritocracia dentro do SNS, as pessoas têm de ser remuneradas de acordo com o seu compromisso e disponibilidade.
Mas há outro problema ainda, se calhar tão grave quanto este: há uma série de pessoas que formamos, que preparamos em áreas específicas, que mandamos para o estrangeiro para desenvolver outras áreas, que eu depois não pude ficar com elas. A burocracia, a dificuldade em contratar um profissional de que preciso para aquela função é extremamente grande. Com o fim das PPP, aumentou o recurso aos prestadores de serviços. E as pessoas rapidamente perceberam o seguinte: “Estou melhor como prestador de serviços, não tenho nenhum compromisso com o hospital, trabalho quando quero, decido o valor que quero receber até ao fim do mês. E ando em leilões de horas de Vila Real ao Algarve.”
E, de repente, os serviços de urgência deste país, mesmo dos hospitais centrais, estão reféns de um número muito significativo de prestadores de serviços. E, para esses, quando são os períodos menos cómodos, como o Natal, a Páscoa e as férias, a sua missão de responsabilidade é nenhuma.
Passou mais um ano e não houve decisões ainda sobre obstetrícia na Margem Sul, quando a ministra Ana Paula Martins já disse que está tudo estudado. Estamos a perder tempo neste domínio?
A península de Setúbal é um caso específico e, neste momento, de uma enorme limitação. Temos três ULS, a de Setúbal, Barreiro e a maior, que é o Garcia de Orta, e o que está a acontecer é que todos os dias uma ou duas estão encerradas. Mas há muitos momentos em que estão as três encerradas. E perguntam-se: será difícil perceber isso?
Os fins-de-semana, agora prolongados, foram exemplo disso mesmo, desses constrangimentos.
Pior do que isto não há. E eu sei que isto é uma dialéctica complexa, nomeadamente para os autarcas, que querem ter tudo à porta de casa. O que devemos querer, acima de tudo, é que as grávidas de Setúbal tenham todo o direito a ter uma assistência com qualidade, humanização, como em qualquer outra parte do país. E há condições para que isso aconteça.
Mas que soluções é que propõe?
Temos todos de perceber qual é o máximo denominador comum, que é aquilo que interessa. E o que interessa a todos é a melhor oferta para as populações e deixarmos de ter posicionamentos muito paroquiais, que deste modo põem tudo em causa.
Ou seja, não ter um serviço em cada concelho?
Aqui nem é ter em cada concelho. Aqui temos de maximizar os recursos que temos. No ano 2000, aqui no Porto, eu era o director da urgência de pediatria do Hospital de São João. Tínhamos urgências pediátricas no São João, Santo António, Maria Pia, Matosinhos e Vila Nova de Gaia. Eram cinco portas de entrada, mas não havia pediatras para as cinco.
A solução é concentração de serviços?
Houve uma partilha, e continua a haver ao fim destes anos, de recursos para fazer face àquilo que é a necessidade. Para a península de Setúbal, aquilo que a Comissão propõe é um upgrade, reconhecendo a sua especificidade. É importante que o Hospital de Setúbal permaneça e que seja reforçado, até porque dá cobertura ao Norte alentejano, que está numa situação muito particular, a uma distância grande de Lisboa e de Évora. Setúbal é a referência.
E depois termos um outro grande serviço, que é o Hospital Garcia de Orta, e que é de apoio perinatal diferenciado, ou seja, é um hospital que tem as valências mais diferenciadas, em que não há necessidade nenhuma de atravessar a ponte.
Fala em partilha de serviços?
Mais do que uma partilha de serviços, que pode começar por aí. A comissão defende um centro materno-infantil com um upgrade, ou seja, os profissionais vão ter melhores condições, vão fazer coisas que neste momento não fazem, vão ter condições de trabalho e diferenciação muito maiores. E vai ser muito residual a necessidade de uma grávida ou de um recém-nascido, por maior prematuridade que tenha, ter de atravessar a ponte.
Que tipo de condições são essas?
Tem de haver, como aqui (no Porto) existe, entre o Hospital Garcia de Orta e o Hospital do Barreiro, um entendimento que seja no sentido de proporcionar aos profissionais melhores condições de trabalho e, ao mesmo tempo, proporcionar às populações serviços de maior qualidade, de maior proximidade, sem necessidade de andar a percorrer quilómetros para atravessar uma ponte para ir para um hospital de Lisboa.
As melhores condições de trabalho são os incentivos de que falávamos há pouco?
São os incentivos, mas são também estas condições logísticas. Em termos de modelo remuneratório, o país conseguiu fazer uma reforma estruturante e criar condições de incentivos de procura nos cuidados primários, que são as USF modelo B. É um modelo que já foi generalizado e que cativa, que promove o trabalho em equipa e em que, de acordo com a disponibilidade de cada um, se podem atingir valores remuneratórios que são satisfatórios.
Qual foi a nossa proposta? Tínhamos na área hospitalar muitas limitações em termos legislativos. Tínhamos aquilo que era conhecido como os CRI (Centros de Responsabilidade Integrada) de primeira geração. Eram modelos remuneratórios muito baseados na produção. Mas não pode ser só isso. Tem de ser produção de qualidade, tem de haver também outras condições, nomeadamente condições da atractibilidade. E isto permite majorar os vencimentos, que vão ser altamente competitivos com aquilo que é feito no privado. Não tenho dúvidas nenhumas de que, passando a acontecer isto, muitos destes colegas que estavam como tarefeiros vão fixar-se no SNS.
São soluções que não serão imediatas. Como é que antecipa o próximo Verão?
As medidas vão ter o seu curso de aprendizagem, de interiorização. Ainda não falámos de uma medida que foi extremamente importante, que é a criação do modelo de triagem (o SNS Grávida), que era uma pré-fase de tudo isto e muitíssimo importante. Estas medidas demoram tempo.
E as pessoas têm de interiorizar este modelo remuneratório e têm de aderir. Portanto, é um processo que, seguramente, tem de ter reflexos até ao fim do ano.
A informação que temos do Ministério da Saúde é a de que a proposta que fizemos foi muito bem acolhida. A Direcção Executiva do SNS já a analisou tecnicamente para perceber se tem enquadramento no que está aprovado em termos de Orçamento do Estado.
No Verão, vamos, com certeza, continuar a ter dificuldades. Mas é nos sítios das principais dificuldades que temos de ser muito incisivos, necessariamente na península de Setúbal e na outra área que me preocupa, que é o Oeste.
Uma outra proposta, além do SNS Grávida, que a comissão que lidera também tinha feito é a de reduzir o número de médicos obstetras para garantir a abertura dos blocos de partos: em vez de termos três médicos, termos dois, desde que houvesse uma equipa de enfermagem completa. O que é que aconteceu à proposta?
Os recursos humanos que têm de estar alocados têm de ser garantidos. Há uma coisa que nós não podemos ultrapassar: são os indicadores de saúde infantil. Eu não quero ver aumentar a mortalidade infantil ou da mulher. E, portanto, há linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas.
Temos de ter a noção de que um parto é muito importante. E, por exemplo, um parto que está previsto ter tudo para ser um parto normal, em questão de segundos, pode transformar-se num parto muito complicado. Tem de haver o mínimo de rácios, quer de enfermagem, quer de médicos, para fazer face a tudo isto.
Dito isto, o que nós fizemos foi um plano de contingência. Vou dar um exemplo. Um hospital que tenha mais de três mil partos, em termos de rácio de recursos humanos, tem de ter cinco elementos. Eu até posso ter os cinco elementos hoje, mas tenho as minhas sete unidades de bloco de partos ocupadas com senhoras em trabalho de parto. Apesar de ter a capacidade instalada, teoricamente, não tenho capacidade de receber uma grávida. É por isso que há uma informação, ao minuto, da capacidade instalada de cada hospital. Daí a importância da referenciação.
Agora imagine que tenho cinco (obstetras), mas nas férias passam a três. Não posso fechar, tenho de adaptar a minha capacidade instalada ao número de profissionais que tenho. Não há razões nenhumas para fechar.
Há poucos dias, afirmou que as pessoas falam do que não sabem e disse ter muita pena da falta de literacia em saúde dos senhores políticos. Estava a falar exactamente de quem?
Estou a falar daquilo a que assistimos todos os dias. Esta é uma matéria muito técnica, e vejo (políticos) defenderem e falarem de coisas que me dói o coração, de total desinformação às populações. Não se preocupam em perceber o que é que está em causa, em sedimentar as propostas em pareceres técnicos, em vez de fazer disto uma arma de arremesso político com frases feitas de quem, de facto, não se preparou minimamente para o debate. Porque fazer propostas populistas é fácil.
Temos de dizer às populações: há dificuldades, não as podemos ignorar, mas temos de as identificar, (saber) o que podemos fazer para as ultrapassar. Mas aquilo que queremos manter é um SNS como ainda é: forte e de altíssima qualidade.
O que é que se deve discutir na área da saúde na campanha eleitoral?
O que se deve discutir é como fazer um diagnóstico, como nós fazemos aos doentes. Qual é o problema? E que soluções efectivas, validadas, práticas vão dar resposta a isto?
E o que os portugueses lá em casa querem é que, quando têm um problema, ele seja resolvido, independentemente se é na unidade A, B ou C, se ela é ou não do sector social.
Na segunda-feira, tivemos um apagão geral, uma situação inédita. Como é que observou a resposta em saúde? Foi um bom teste de stress?
Não podia haver melhor teste de stress. Este foi o melhor simulacro para situações desta natureza. A estrutura está muito bem preparada, o plano de intervenção e de emergência está bem identificado, o que compete a cada um fazer está bem identificado, e acho que a resposta foi extraordinária.
Nada aconteceu, felizmente, porque as pessoas estavam preparadas para isto.