Em Silêncio no Coração dos Pássaros, Lénia Rufino conduz o leitor por uma viagem de rutura, memória e reencontro interior. A protagonista, Laura, é uma violinista consagrada que, ao decidir terminar um casamento de 27 anos, revisita os momentos que moldaram a sua identidade: a infância solitária onde a música se tornou refúgio, o amor tranquilo, mas entorpecido com Álvaro, e a descoberta de um novo fôlego emocional ao lado de Thomas, clarinetista austríaco mais jovem.
O romance com a chancela da Manuscrito, tece-se a três vozes — Laura, Álvaro e Thomas —, para desenhar uma paisagem emocional densa e intimista, onde o silêncio surge não como ausência, mas como espaço de escuta e transformação. A música, omnipresente, é linguagem e cenário, metáfora e impulso. Através da orquestra, das viagens e dos palcos, emerge também a metáfora do renascimento: da mulher que se permite começar de novo, mesmo quando a sociedade espera que se mantenha imóvel.
Lénia Rufino nasceu em Lisboa, em 1979, e cresceu entre livros. Apesar de ter seguido a via da publicidade e do marketing, nunca deixou de escrever. Publicou o seu primeiro romance em 2021, O Lugar das Árvores Tristes. Com este segundo livro aprofunda temas que a inquietam: os ciclos da vida, a identidade feminina, a culpa e a possibilidade do recomeço.
Inspirada por um instante real — o olhar pousado sobre uma violinista num concerto da Gulbenkian — Rufino construiu uma narrativa onde os pássaros simbolizam não a liberdade, mas as personagens que, tal como notas suspensas no tempo, procuram reencontrar o seu som.
Antes de enveredarmos a conversa no presente livro, gostaria de a perceber enquanto autora. Consegue identificar no seu percurso de vida o momento fundador que a levou à decisão de ser escritora?
Não foi propriamente uma decisão, no sentido em que não construí o meu percurso com a ideia de um dia ser escritora. Mas essa decisão apareceu muito cedo, por volta dos meus dez anos, quando percebi que contar histórias era algo que me dava um gozo tremendo. Lembro-me de pensar que um dia haveria de ser escritora. Depois, fui crescendo com uma noção bastante clara do país em que vivemos e da impossibilidade que é viver apenas da escrita. Acabei por seguir por outros caminhos, mas nunca parei de escrever e a intenção de ser uma escritora com obra publicada esteve sempre aqui. Entre o primeiro momento e a publicação do meu primeiro livro passaram 32 anos. Não tive pressa.
De que forma descreve o seu estilo nos primeiros contos e no romance inaugural, e como sente que essa voz se transformou neste seu segundo livro?
Os meus contos têm uma voz ainda muito imberbe e imatura. Era muito influenciada pelas coisas que lia (acho que continuo a ser, mas leio coisas diferentes agora), consumia imenso Pedro Paixão, por exemplo, e sinto que isso acabou por influenciar aquela voz mais poética e introspetiva com que escrevi os primeiros contos. Depois, naturalmente, fui abrindo a mente a outras coisas e a minha escrita acabou por mudar. Aliás, acho que está sempre em constante mudança — e ainda bem. O meu primeiro romance tem um tom mais pragmático, se quisermos, ao passo que o romance que publiquei agora volta a ter um tom mais introspetivo. Isto prende-se muito com os temas que abordo e com as histórias que quero contar. Este livro, por falar sobre o final de um ciclo que acaba por mudar a vida de várias pessoas, pedia um tom mais pausado, mais virado para o que se sente e menos para o que se faz.
No que respeita ao livro Silêncio no Coração dos Pássaros, tem presente o momento decisivo em que compreendeu verdadeiramente qual era a história que queria contar?
A ideia surgiu enquanto assistia a um concerto na Gulbenkian. O meu olhar fixou-se numa violinista e surgiu a pergunta “e se esta mulher, lindíssima e etérea, estivesse, na verdade, a passar por um turbilhão avassalador, pelo fim de um casamento longo e estivesse cheia de dúvidas e de medos? Tirei umas notas durante o concerto e, quando cheguei a casa, comecei a esboçar o esqueleto da história. Comecei o processo de escrita propriamente dito uma semana depois e demorei precisamente nove meses a terminar o manuscrito.
Não quis escrever uma história de vilões e inocentes, nem quis atribuir a ninguém a culpa pelo fim daquela relação que acontece de forma bastante natural.
Antes de começar a escrever o presente título, que temas definiu como “inegociáveis” para figurarem nas páginas do seu livro? Diria que a ideia de que nunca é tarde para recomeçar ou o peso da culpa são nucleares?
São ambos temas centrais que teriam de fazer parte do percurso destas personagens. Não quis escrever uma história de vilões e inocentes, nem quis atribuir a ninguém a culpa pelo fim daquela relação que acontece de forma bastante natural no enquadramento do que é o crescimento destas pessoas. Não me fazia sentido que a culpa da rutura fosse de um terceiro elemento, como não queria culpar nenhuma das partes do casal que se desfaz. A vida acontece e nem sempre há culpados.
Silêncio no Coração dos Pássaros apresenta três narradores — Laura, Álvaro e Thomas. Quais foram os principais desafios ao criar vozes tão distintas e como definiu a sequência em que cada perspetiva surge?
O livro está publicado na ordem pela qual foi escrito. Não delineei o que iria acontecer de forma detalhada. Fui escrevendo e, à medida que o fazia, iam-se abrindo portas que quis ir explorando. Não há uma lógica por detrás da sequência das vozes, mas sim na forma como conto a história. Gosto muito de utilizar analepses, coisa que já tinha feito no primeiro romance, porque gosto da ideia de espalhar migalhas que depois hão de construir o puzzle final.
A questão das vozes dos três narradores foi talvez o grande desafio deste livro. Escrever três personagens na primeira pessoa é um processo complexo e é preciso cuidado para as diferenciar e, mais ainda, para não deixar que a minha voz se imponha sobre as delas. Foi nesta construção que investi mais tempo, e foi precisamente para lhes dar vozes diferentes entre si que senti necessidade de me demorar na escrita. Inicialmente, pensei em criar um Thomas que falasse de forma seca e quase ríspida, mas os austríacos não são assim, são mais doces, mais melódicos. A Laura foi sempre uma mulher decidida, apesar das dúvidas em que se demora. Quis dar-lhe uma verdade que, apesar de poder questionada à luz daquilo que a sociedade considera convencional e aceitável, fosse dela e que ela assumisse apesar de tudo. O Álvaro, que foi a personagem que mais gostei de escrever, é um homem que vive muito dentro da sua cabeça. Daí a utilização dos parêntesis nos seus capítulos. O Álvaro vai decaindo e ficando cada vez mais virado para dentro. Deu-me muito gosto escrever este homem tão atormentado e prenhe de sofrimento.
A música, em especial o violino, atravessa toda a narrativa. Até que ponto a música influenciou a construção das personagens e o próprio ritmo do romance?
Considerando que tudo nasceu porque fixei o olhar numa violinista, a música teria de ter sempre um papel fundamental nesta história. Ainda que pudesse tê-la usado apenas como banda sonora para as sessões de escrita, acabei por decidir torná-la central na trama. A ideia de ter uma orquestra como cenário acabou por me permitir “viajar” pela Europa e por descobrir bastante acerca deste universo. No texto, não sei se por culpa da música ou do tal tom introspetivo que usei, há uma certa musicalidade que acaba por embalar a narrativa.
O título conjuga “silêncio” e “pássaros”, simbolizando, por um lado, ausência de som e, por outro, um ideal de liberdade. Para si, o silêncio dos pássaros representa sobretudo um momento de catástrofe ou uma oportunidade para a escuta interior e o “renascer”?
Confesso que os pássaros do título não se prendem com a ideia de liberdade. São, isso sim, um símbolo da música e representam as personagens que compõem a história. O silêncio, aqui, é a ausência de ligação, o vazio que se foi instalando e a distância que se agigantou entre Laura e Álvaro.
Ao retratar a decisão de Laura de encerrar um matrimónio de quase três décadas, que reflexões pretende suscitar sobre a condição da mulher e a sua afirmação individual, particularmente no contexto do compromisso prolongado – embora já destituído de sentido - e da procura de emancipação pessoal?
Sem querer dar lições de moral a ninguém, quis escrever sobre o mar de possibilidades que se abre sempre que se encerra um ciclo, seja ele de que índole for. Neste caso, é um casamento, mas poderia ser uma multitude de relações ou enquadramentos. Na vida, estamos sempre a terminar fases que dão espaço e lugar a outras. A ideia de que não temos de ficar presos a uma decisão que tomámos anos antes, quando as circunstâncias eram outras e nós, outras pessoas, foi algo que não me largou a mão durante o tempo de escrita desta narrativa. Acho bonita a ideia de que podemos sempre refazer-nos, com mais ou menos estilhaços. Há sempre espaço para construir algo novo, ainda que, para que isso aconteça, seja necessário passar por algumas dores.
Sem querer dar lições de moral a ninguém, quis escrever sobre o mar de possibilidades que se abre sempre que se encerra um ciclo, seja ele de que índole for.
Ao longo do texto parece-me haver um território de melancolia, mas também se afirmam faíscas de esperança. Concorda? Porquê?
Claro! Nem tudo é triste, mesmo quando as coisas terminam e ficamos órfãos de uma realidade com a qual vivemos durante algum tempo. Não gosto de uma certa ideia de calamidade associada ao final de um relacionamento. Uma separação, mesmo que seja muito dolorosa, não tem de ser uma tragédia. Claro que cada caso é uma realidade individual, e o facto de eu ver as coisas assim não significa que esta seja uma verdade insofismável. Mas gosto e acreditar que, quando algo acaba, se abre espaço para que outra coisa, tão boa ou melhor, possa nascer. E essa coisa pode ser simplesmente um tempo de recolhimento e autodescoberta, não tem de ser outro relacionamento, outro amor.
Laura enfrenta uma profunda crise existencial e questiona o seu lugar no mundo. Como desenhou as fragilidades e as forças desta personagem, de forma que o leitor se reveja na sua jornada?
Quando imaginei a Laura, imaginei-a uma mulher forte, mas cheia de contradições.
Quis escrever uma mulher que tivesse algumas atitudes que pudessem suscitar dúvidas e, quiçá, abrir espaço para algum debate, ainda que apenas interno, um processo de cada leitor. Não quis fazer dela uma espécie de bastião da virtude feminina, quis que houvesse matéria passível de ser questionada. No fundo, a Laura é uma mulher em transição, alguém a despir a pele de uma vida inteira para abraçar o que de novo a vida lhe possa trazer.
Álvaro e Thomas são mais do que “objetos” de relacionamento, são também reflexos de diferentes momentos da vida de Laura. Estes homens, nas suas diferenças, personificam também duas Lauras?
Dizer que Álvaro e Thomas personificam fases diferentes de Laura seria retirar-lhes importância, e isto é algo que nunca foi minha intenção. Eles são personagens tão ou mais complexas do que a Laura, no sentido em que atravessam os seus próprios desertos ao longo do livro. Álvaro é confrontado com uma rutura que nunca anteviu, nem quis aceitar, mas é obrigado a adaptar-se e a encontrar uma forma de viver com o que vem a seguir. Talvez houvesse espaço para escrever a história dele depois do divórcio: quem é este homem que é forçado a reinventar-se? Como sobrevive ao colapsar de uma vida que acreditava estar assente em fundações sólidas? O que vem a seguir para ele? E Thomas, apesar de ser o elemento que leva Laura a aceitar que o que viveu durante quase 30 anos já não existe, é bastante mais do que uma diversão em que ela se demora por instantes. Este homem tem uma vida antes de Laura, e faz o seu próprio caminho depois dela. Vejo as três personagens como entidades com igual peso e importância na trama, apesar de ser sobre Laura que as luzes brilham durante mais tempo.
Após este segundo romance, cogita já num novo escrito?
Não consigo estar sem imaginar histórias. Algumas acabam por ser mais do que meras ideias; outras perdem-se sem nunca chegarem a assentar. Neste momento, tenho algumas ideias em que quero pensar com calma, até sentir que uma delas se impõe sobre as outras. Em princípio, será essa que trarei no próximo livro. Já sinto falta da minha rotina de escrita, que é mesmo o que me dá mais prazer fazer.