“A confidencialidade na arbitragem é fundamental para atrair os agentes económicos” – ECO

Ana Sofia Rendeiro, João Maria Pimentel e Miguel Esperança Pina, da CS'Associados, falam da arbitragem em Portugal, em entrevista à Advocatus.

Os advogados da CS’Associados, Ana Sofia Rendeiro, responsável pela área de prática de Arbitragem, João Maria Pimentel e Miguel Esperança Pina, sócios nas áreas de prática de Contencioso e Arbitragem e de Reestruturação de Empresas e Insolvência, falam à Advocatus sobre o crescimento da arbitragem em Portugal.

Miguel Esperança Pina é sócio nas áreas de prática de Contencioso e Arbitragem e de Reestruturação de Empresas e Insolvência. Tem mais de 30 anos de experiência em litígios comerciais e civis de elevada complexidade, bem como em arbitragens nacionais e internacionais, a uma escala global. Presta aconselhamento na área de contencioso contratual, nomeadamente em matéria de litígios comerciais, financeiros, de financiamento de projetos, concessões públicas, construção e energéticos. Atua na qualidade de árbitro a nível nacional e internacional envolvendo, entre outras, empresas de aviação, indústria alimentar e media. A sua experiência como árbitro inclui mais de 50 Arbitragens administradas pela Câmara de Comércio Internacional e pelo Centro de Arbitragem Comercial de Lisboa, tendo sido nomeado árbitro por entidades como o Estado Português e os Estados Unidos da América.

João Maria Pimentel é sócio nas áreas de prática de Contencioso e Arbitragem e de Reestruturação de Empresas e Insolvência. Tem experiência de mais de vinte anos de trabalho em tribunal e em arbitragens, onde representa os interesses dos clientes em litígios de natureza civil, comercial e financeira. Tem ainda experiência no acompanhamento de processos de insolvência, tanto na ótica da recuperação, como da liquidação da empresa, atuando ainda na defesa dos interesses dos credores e investidores e na verificação dos direitos e deveres dos administradores no quadro das respetivas responsabilidades.

Ana Sofia Rendeiro é responsável pela área de prática de Arbitragem. A sua atividade tem enfoque em litígios judiciais e em arbitragens nacionais e internacionais, sobretudo em conflitos nas matérias financeira, comercial e societária, bem como nos setores de energia e construção. Nas áreas de insolvência, liquidação e reestruturação de empresas e instituições financeiras tem experiência na representação em tribunal de credores e devedores e no aconselhamento de credores e fundos investidores nestas matérias.

Ana Sofia Rendeiro, responsável pela área de prática de Arbitragem, João Maria Pimentel e Miguel Esperança Pina, sócios nas áreas de prática de Contencioso e Arbitragem e de Reestruturação de Empresas e Insolvência.

Quais as principais diferenças entre atuar como advogado das partes e como árbitro em disputas complexas?

O advogado e o árbitro, estando ambos sujeitos ao cumprimento escrupuloso da lei, têm papéis distintos e a sua forma de atuação no processo é inconfundível.

O advogado é representante, procurador de uma das partes, competindo-lhe, dentro do quadro legal, defender e zelar pelos direitos e interesses do seu representado. O árbitro está acima das partes e o compromisso que tem com as mesmas é o de dirigir o processo, nas suas diferentes fases, com o objetivo de uma justa composição do litígio. Assim, ao árbitro são exigidos deveres de imparcialidade, objetividade e de equidistância que, naturalmente, não recaem sobre o advogado.

Ao contrário do árbitro, o trabalho do advogado começa muito antes da arbitragem, quando é chamado a participar na própria redação das cláusulas arbitrais, garantindo a sua adequação com estruturas contratuais complexas, ou na fase pré-litigiosa prevenindo que sejam dados passos em falso pelo seu representado. E por vezes, também ao contrário do árbitro, o trabalho do advogado prolonga-se para além da arbitragem, nas situações de impugnação da decisão arbitral.

Importa também referir que, como decisor imparcial, ao árbitro compete disciplinar e organizar o processo, de forma eficiente e dinâmica, guiando as partes para o que são os temas essenciais e os pontos carecidos de prova, e garantido em todos os momentos o respeito pelos princípios do contraditório e da igualdade das partes.

Como avalia o crescimento da arbitragem no nosso país, especialmente em setores como infra estruturas, energia e contratos públicos? Há resistência cultural ou jurídica?

As estatísticas apontam no sentido de que é nos setores de infraestruturas e energia, em matérias ligadas nomeadamente a empreitadas e concessões, que tem havido mais e maiores arbitragens em Portugal.

Segundo os dados estatísticos do CAC (Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa) – o centro de arbitragem voluntária em Portugal que concentra mais arbitragens em matéria comercial –, no ano de 2024 a grande maioria das arbitragens foi em matérias de empreitada e concessão, que em parte estão ligadas ao setor da energia, mas não só (não há dados que indiquem exatamente quantos casos estão ligados ao setor de energia). Juntos, os casos de empreitada e concessão representaram mais do que a totalidade das demais disputas, ligados a matérias societárias, de gestão hospitalar, etc. Segundo os dados estatísticos da ICC (International Chamber of Commerce) de 2023, os litígios nos setores de engenharia/construção e energia também representam o maior número de arbitragens naquele centro.

Anotamos que as arbitragens internacionais, especialmente que correm na ICC, que envolvem intervenientes portugueses têm conhecido um significativo aumento, quer pelo investimento estrangeiro, quer, e isso é uma novidade, pelo investimento português no estrangeiro.

Sublinhamos ainda que, não obstante inexistirem dados estatísticos concretos, as arbitragens ad hoc nas áreas em questão também têm aumentado significativamente. As empresas nestas áreas, especialmente em contratos de estrutura complexa e/ou maior expressão económica, estão abertas e optam muitas vezes pela arbitragem, incluindo mas não apenas quando estão envolvidas partes de várias nacionalidades. Nestes casos, não é frequente haver resistência jurídica, nem resistência cultural à arbitragem. Pelo contrário, julgamos poder afirmar que nas áreas em causa já existe uma cultura arreigada no mercado de recurso à arbitragem. Os custos da arbitragem são, ainda, um fator que gera resistência especialmente nos litígios de menor valor, cujas custas nos tribunais judiciais são mais baixas, mas a arbitragem também está a dar resposta a este tema e os regulamentos de arbitragem preveem procedimentos mais expeditos e económicos que podem ser adotados pelas partes.

As estatísticas apontam no sentido de que é nos setores de infraestruturas e energia, em matérias ligadas nomeadamente a empreitadas e concessões, que tem havido mais e maiores arbitragens em Portugal”

Quais as vantagens da arbitragem face aos tribunais tradicionais, considerando custos, tempo e especialização dos árbitros?

A especialização e a flexibilidade continuam a ser duas importantes mais-valias da justiça arbitral. Assim, e por um lado, a arbitragem permite às partes ter julgadores especializados e com experiência na matéria sob litígio, o que é tanto mais relevante quando os factos em discussão se reportam a temas de especial complexidade ou especificidade técnica ou quando envolvem estruturas contratuais intricadas, com as quais os tribunais estaduais necessariamente menos especializados podem não estar tão familiarizados.

Por outro lado, a arbitragem permite conduzir o processo com regras mais ágeis e eficientes, com evidente economia de recursos, como é o caso da regra que prevê a bifurcação de temas ou daquelas que limitam os expedientes dilatórios na produção de prova documental e testemunhal. Todos os intervenientes, em regra, estão muito comprometidos na eficiente resolução das questões materiais, dando ao formalismo a importância que deve ter. Nesse sentido todos puxam para o mesmo lado.

Nas arbitragens internacionais, a possibilidade de escolha de língua, da sede de arbitragem e de nomear árbitros que dominam a lei aplicável ao litígio é também uma vantagem que importa considerar. No seio internacional, alarga-se a escolha de árbitros especializados e qualificados, mais afastados das partes e das questões. Cumprem-se mais cabalmente as principais características e benefícios da arbitragem: mais eficiência, mais segurança e mais profundidade na apreciação técnico-jurídica, mais objetividade, mais imparcialidade e independência.

Como é que Portugal se posiciona no cenário de arbitragem internacional, especialmente em disputas investidores-Estado?

O investimento estrangeiro é protegido através dos Tratados Bilaterais para Proteção do Investimento, usualmente conhecidos pela sigla inglesa BIT, os quais consagram os princípios internacionalmente reconhecidos, tais como a proibição de expropriações ou de confiscos sem justa indemnização. Uma especificidade destes tratados é a regra do tratamento mais favorável, nos termos da qual a parte de um BIT beneficia do melhor regime sobre determinada matéria previsto noutro BIT de que também seja contraente a contraparte. O mecanismo de resolução de litígios previsto nos BITs é o da arbitragem internacional ICSID sob a égide do Banco Mundial, cuja intervenção tem uma eficiência particular, sobretudo junto de países que dependem desta instituição. São as denominadas arbitragens de investimento. Portugal tem BITs com cerca de 50 países.

Assim, há um número significativo de nações com quem se podem resolver as disputas entre investidores e os Estados através deste mecanismo. Até ao momento, não tem havido demandas do Estado Português, o que significa que este é cumpridor. E o maior significado seria o das disputas neste sentido, isto é, contra o Estado Português, uma vez que há mais importação de investimento do que exportação. Como o investimento de Portugal no estrangeiro têm aumentado, especialmente nos países de expressão oficial portuguesa, é natural que o recurso a estes meios conheça um incremento. Um campo que seria fértil para estas disputas seria a das justas indemnizações aos cidadãos portugueses pelas nacionalizações, expropriações e confiscos nas antigas colónias portuguesas, mas os BITs celebrados com esses países excluem tais disputas do seu objeto. Não obstante, os advogados portugueses têm participado em arbitragens de investimento que envolvem outros Estados, como já nos aconteceu. Uma última referência às arbitragens no âmbito da Convenção Lomé II, entretanto revogada, aplicável a países africanos, que também eram consideradas arbitragens de investimento e nas quais também participámos. Concluindo: Portugal é um país recetivo à arbitragem de investimento e, nessa medida, contribui para a globalização e incremento do comércio internacional.

Quais os maiores desafios em litígios contra a Administração Pública portuguesa?

O principal desafio dos litígios arbitrais que envolvem a Administração Pública reside no combate à falta de transparência, desde logo na nomeação dos árbitros. Os critérios de nomeação dos árbitros exigem a clarificação dos critérios e um regime de verificação de conflitos de interesses à prova de bala. Não pode ficar qualquer réstia de dúvida sobre a cabal competência e independência de quem vai julgar causas que envolvem, normalmente, quantias exorbitantes que podem afetar o interesse público. Outro tanto se diga da nomeação dos advogados. Para a opinião pública, tudo tem de ser transparente e as regras de direito público que ditam a contratação de meios para defesa do interesse público têm de ser aplicadas. O recente crescente recurso ao corpo de Advogados do CEJURE (Centro Jurídico do Estado), que tem recrutado os mais qualificados da área da arbitragem pública, é sem dúvida uma medida que se afigura muito salutar e de aplaudir, que vai ao encontro da transparência da contratação de meios nesta área. Este caminho permitirá enfrentar o principal desafio nestas arbitragens públicas e criar as condições para a credibilização, aceitação e consequente desenvolvimento deste importantíssimo meio alternativo de resolução desta ordem de litígios que podem ser críticos para a economia nacional.

O principal desafio dos litígios arbitrais que envolvem a Administração Pública reside no combate à falta de transparência, desde logo na nomeação dos árbitros. Os critérios de nomeação dos árbitros exigem a clarificação dos critérios e um regime de verificação de conflitos de interesses à prova de bala”

Como a digitalização e a inteligência artificial estão a impactar o contencioso e a arbitragem em Portugal? Há riscos de “burocracia digitalizada”?

A digitalização e a inteligência artificial trazem vantagens enormes para o contencioso, em geral, e a arbitragem, em especial. A União Europeia está atenta à implementação de sistemas de inteligência artificial nos tribunais estaduais e arbitrais, tendo concretamente tratado o tema em Regulamentos sobre Inteligência Artificial, alertando para a necessidade de se estar especialmente atento aos riscos dos sistemas de inteligência artificial na administração da justiça.

Naturalmente, a inteligência artificial não pode substituir o decisor humano. A revisão e a decisão humana são essenciais e há uma consciência evidente nesse sentido, tanto na arbitragem como no contencioso.

Não obstante, há muitos outros momentos do processo em que a inteligência artificial e a digitalização podem (e devem) estar presentes. Os tribunais têm todo o incentivo para utilizar ferramentas de inteligência artificial. A utilização destes instrumentos nos tribunais arbitrais e nos tribunais judiciais pode ser transformadora para melhorar o acesso à justiça, em particular num sistema jurídico sobrecarregado, como o português.

O Código de Processo Civil está aberto à gestão do processo pelo juiz e a soluções digitais (por exemplo, a utilização de meios digitais para a audição de testemunhas). As regras em matéria de provas não estão completamente fechadas. O conceito de documento tem evoluído, recorrendo-se amplamente a e-mails, mensagens de WhatsApp… como meios de prova. O sistema jurídico tem de evoluir com a sociedade e a digitalização é necessária para acompanhar a evolução da sociedade e também para fazer com que a informação chegue mais rapidamente aos cidadãos e a justiça seja mais célere e eficiente.

Na arbitragem recorre-se amplamente aos meios digitais. Muitos regulamentos dos centros de arbitragem já preveem a digitalização e a tramitação dos processos é tendencialmente desmaterializada. Em processos complexos, com milhões de páginas, a gestão digital é essencial e os centros arbitrais e os vários intervenientes na arbitragem estão normalmente muito preparados para tratar os processos digitalmente. Na sala de um tribunal arbitral é hoje comum que os árbitros e o secretário não tenham à sua frente quaisquer documentos impressos, mas apenas um computador, acedendo a todo o processo por meio do mesmo. De resto, em abono da verdade, o mesmo sucede atualmente nos tribunais judiciais, apesar de menos apetrechados tecnicamente para esse efeito do que os tribunais arbitrais.

Ainda na arbitragem, em fases como a de “disclosure of documents”, típica dos sistemas de common-law e frequente nas arbitragens internacionais, os sistemas de inteligência artificial de pesquisa e análise de documentos podem ser muito úteis, havendo já empresas que se dedicam a desenvolver este tipo de sistemas adaptando-os às necessidades de pesquisa que normalmente surgem nestes processos.

Tanto nos tribunais estaduais, como nos arbitrais, as partes entregam tudo digitalmente, o que elimina os custos de impressão. Porém, este aspeto, aliado à proliferação de emails que podem ser juntos como prova e às facilidades de pesquisa e localização dos mesmos, tem tornado os processos cada vez mais volumosos. É fácil encontrar milhares de emails e juntá-los, como também é fácil chamar testemunhas que estão a milhares de quilómetros de distância, por exemplo, o que tem sobrecarregado muito a instrução dos processos, com muita produção de prova.

Julgamos que os centros nacionais de arbitragem têm de evoluir nessa área, como em geral no que às questões técnicas e logísticas respeita. Há muito que defendemos que temos de ombrear a esse nível e a nível dos meios humanos de secretariado das arbitragens com os mais avançados a nível internacional. É essencial esse investimento para tornar Portugal mais convidativo para as arbitragens internacionais e, assim, tornar-se um centro de arbitragem internacional reputado, atraindo a resolução de litígios, especialmente os de língua portuguesa ou de idiomas e ordenamentos que se assemelhem ao nosso. Olhos postos no futuro, sem deixar de apelar à nossa tradição ímpar na arbitragem. Sabiam que em Gaia ainda existe a mesa da arbitragem do tempo do nosso primeiro monarca?

Os tribunais têm todo o incentivo para utilizar ferramentas de inteligência artificial. A utilização destes instrumentos nos tribunais arbitrais e nos tribunais judiciais pode ser transformadora para melhorar o acesso à justiça, em particular num sistema jurídico sobrecarregado, como o português”

Qual o papel da arbitragem em disputas emergentes, como transição energética ou conformidade ESG?

A arbitragem tem todas as condições para desempenhar um papel muito relevante nas disputas destas matérias. Estes temas têm vindo a ser muito discutidos no forum da arbitragem, internacionalmente e também concretamente em Portugal. A arbitragem oferece a vantagem de um forum neutro e de beneficiar da cobertura mundial.

Para além disso, estas matérias estão em rápida evolução e requerem elevada especialização. Este tipo de especialização, concretamente em matéria ambientais, políticas de transição energética, direitos humanos e outros, tem sido lenta nos tribunais estaduais e é potencialmente mais célere na arbitragem, com a possibilidade de escolha de árbitros com o conhecimento e experiência necessários e habituados a tratar estes temas de forma global. Para além disso, são temas novos em que é importante a experiência internacional (que as partes poderão encontrar nos árbitros que escolhem) pode ser muito relevante.

Os centros de arbitragem também estão atentos e os regulamentos de arbitragem têm vindo a destacar as vantagens em recorrer à arbitragem nestes litígios, por exemplo em matérias de alterações climáticas. A ICC, por exemplo, publicou um relatório especificamente dedicado a como resolver disputas relacionadas com alterações climáticas através da arbitragem e dos meios de resolução alternativa de litígios. Neste relatório destacam-se os instrumentos internacionais para reconhecimento transfronteiriço das sentenças internacionais, a especialização e a flexibilidade da arbitragem para adaptar os processos às necessidades próprias destes processos e outras vantagens.

Como lidar com conflitos de interesses em arbitragens, especialmente em casos de “nomeações múltiplas” de árbitros?

É uma matéria que tem merecido, e ainda bem, uma especial atenção dos estudiosos e dos práticos da arbitragem. Neste campo dos conflitos de interesses, a arbitragem evoluiu significativamente em Portugal. Passou-se de uma situação altamente indesejável, em que os árbitros nomeados pelas partes eram vistos como mais um advogado da parte, para uma situação em que existe uma consciência generalizada de que um árbitro está sujeito aos princípios estruturantes da Independência e da Imparcialidade. Assegura-se a prossecução desses princípios através da verificação da não existência de conflitos de interesse, da respetiva revelação e das inerentes consequências. Houve dois momentos-chave neste caminho: o código deontológico da APA (Agência Portuguesa do Ambiente) que foi subscrito pela quase totalidade dos árbitros portugueses e a aplicação pelos tribunais das regras de soft law, previstas nas diretrizes da IBA (International Bar Association) que contêm um sistema de classificação por cores para qualificar as situações de conflito de interesses desde as que são impeditivas de exercer o cargo de árbitro até àquelas que apenas implicam que o árbitro as revele às partes, mas que não o impedem de aceitar ou de se manter na função de árbitro.

Atualmente o corpo de árbitros português tem consciência da importância destas regras e da imperatividade do respeito pelas mesmas. Assim, na prática, este corpo de regras de caráter deontológico, a sua interiorização pelos árbitros e a agilização da sua implementação pelas partes oferecem um quadro que permite lidar de uma forma adequada com conflitos de interesses. Dir-se-ia que os instrumentos existentes devem continuar a sedimentar-se na mentalidade da comunidade arbitral, quer pelos árbitros, quer pelas partes, para se atingir uma situação ético-jurídica paulatinamente mais protetora dos valores em causa: a independência e a imparcialidade.

No que respeita às nomeações múltiplas, as regras aplicáveis implicam um acordo das partes quanto à indicação de um árbitro comum, o que à partida leva a que o árbitro nomeado seja alguém em quem as partes confiam para garantir a equidistância relativamente a quem o nomeia. Na prática poderão surgir situações dilemáticas de antagonismos entre as várias partes que nomeiam o árbitro, nas quais servirá de fiel da balança a dita equidistância que fará com que a decisão que implique o detrimento de alguma ou algumas das partes assente em critérios objetivos e não em qualquer parcialidade ou dependência. Não são, também, raras as situações em que a falta de acordo das partes para nomearem o árbitro comum resulte na intervenção dos tribunais estaduais para a nomeação.

Passou-se de uma situação altamente indesejável, em que os árbitros nomeados pelas partes eram vistos como mais um advogado da parte, para uma situação em que existe uma consciência generalizada de que um árbitro está sujeito aos princípios estruturantes da Independência e da Imparcialidade”

Quais as melhores práticas para garantir transparência e confidencialidade em processos arbitrais?

Como é consabido, uma das pedras de toque da arbitragem é a confidencialidade. Os instrumentos que a asseguram, que são em primeira linha a obrigação de confidencialidade a que todos os intervenientes estão vinculados, a não publicidade das arbitragens e a não recorribilidade por forma a evitar que os processos se tornem públicos nos tribunais judiciais superiores, podem criar uma perceção de menor transparência. A confidencialidade é fundamental para atrair os agentes económicos que não se devem expor ao julgamento da opinião pública em matérias complexas e usualmente que envolvem avultadas somas, as quais implicam um julgamento num ambiente altamente profissional e de serenidade científica em que os maiores especialistas possam agir desapaixonadamente e sem pressões externas. Mas, por outro lado, a transparência não pode ser descurada.

Julgamos que, no quadro atual, uma forma de evitar a menor transparência por força da confidencialidade será o de as partes não abdicarem da recorribilidade da decisão arbitral, mas limitada a um grau de recurso, o que permitirá a sindicância da mesma pelo tribunal superior sem delongas significativas, mantendo uma das grandes virtudes da arbitragem que consiste na rapidez. Outra via será a da publicidade anonimizada das decisões. Havendo este duplo crivo, julgamos que a confidencialidade é assegurada sem prejuízo da sindicabilidade das decisões que, pelo seu lado, assegura a adequada transparência. Poder-se-ão também eleger situações, tipicamente as que sejam justificadas pela defesa do interesse público, designadamente onde haja questões de natureza criminal, que justifiquem o levantamento da confidencialidade por determinadas entidades especialmente qualificadas.

Portugal é visto como um hub arbitral para países lusófonos. Que oportunidades vos traz?

Não obstante poder-se pensar ou pretender-se que Portugal fosse um hub arbitral para países lusófonos, por se tratar do berço da lusofonia, a verdade é que não o é. Desde logo, o Brasil é um país muito avançado em termos arbitrais, não só por se tratar de um enorme mercado que aloja naturalmente arbitragens de dimensão incomparável com as portuguesas, como se encontra na área de influência da arbitragem anglo-saxónica, sobretudo, por uma parte muito significativa do investimento estrangeiro no Brasil ser norte-americano.

No que respeita aos países lusófonos africanos, a situação é semelhante, não pelas mesmas razões, mas porque as iniciativas têm sido parcelares e assistemáticas, ao nível de grupos não institucionalizados. Já foram tentadas iniciativas institucionalizadas: no seio da Confederação Empresarial CPLP tentou-se instituir um centro de arbitragem ad hoc instalado em Portugal ou a criação de um regulamento ad hoc no âmbito do CAC; no capítulo português do CEIA (Club Español e Iberoamericano del Albitraje), que é o maior club de arbitragem do mundo, tentou-se agregar todos os países lusófonos no capítulo português para que a língua portuguesa ganhasse proeminência no seio do club e se pudesse desenvolver o hub arbitral da lusofonia. Estamos convencidos de que esta é a via adequada, envolvendo o esforço e a participação de toda a comunidade lusófona, em lugar de tentativas esparsas e parcelares.

Havendo uma institucionalização da arbitragem do mundo lusófono, Portugal desenvolveria seguramente um papel relevante. Mesmo que não fosse o hub arbitral dessa realidade, tal acarretaria enormes benefícios, porquanto a dimensão desse mercado arbitral traria grandes sinergias e proporcionaria a intervenção da comunidade arbitral lusófona em muitas mais arbitragens de complexidade e de volume incomparáveis com as atuais, daí decorrendo critérios mais exigentes com o consequente incremento da qualidade dos intervenientes, o que traria mais e melhor investimento estrangeiro devido à melhoria da Justiça.

A arbitragem já é vista como uma alternativa “popular” aos tribunais tradicionais em litígios comerciais?

Sendo indiscutível a consolidação da arbitragem com meio alternativo de resolução de litígios, a mesma não tenderá para essa “popularização” e, muito menos, para uma “massificação”.

Não só porque os tribunais estaduais vão oferecendo uma resposta relativamente adequada em matérias sobre as quais se vêm debruçando há várias décadas (vale a pena recordar a abundante e consistente jurisprudência em matérias de construção civil, agência, distribuição, etc.), mas também porque a arbitragem, como processo voluntário que é, sem a coercividade das regras dos tribunais estaduais, pode não ser a via mais apropriada em litígios que envolvam partes menos sofisticadas, sem histórico de mercado ou com maior debilidade económica.

Quais são os principais desafios da arbitragem internacional, como a conciliação de diferentes sistemas jurídicos?

Os árbitros e os advogados que exercem na área de arbitragem internacional estão cada vez mais preparados para lidar com as diferenças dos sistemas jurídicos. As regras aplicáveis nas arbitragens internacionais tendem a ser semelhantes, nomeadamente resultantes ou inspiradas em regulamentos de centros arbitrais, como a ICC ou a LCIA (London Court of International Arbitration), no caso da Europa. Isto sem esquecer que atual Lei da Arbitragem Voluntária, que entrou em vigor em 2012, obedece ao modelo UNCITRAL que é o mais moderno e mais seguido internacionalmente, o que facilita, naturalmente, o manuseamento da arbitragem por advogados e árbitros dos vários diversos ordenamentos. Na verdade, a arbitragem internacional bebe de vários sistemas jurídicos e culturas. Ao lidarem com vários sistemas, os intervenientes têm um leque maior de opções e é comum haver processos que se regem por um misto de regras típicas do sistema de common-law e outras do de civil law.

Um dos maiores desafios da arbitragem continua a ser, na verdade, a falta de força coerciva, por exemplo para fazer cumprir medidas cautelares ou obter prova. Embora os tribunais arbitrais possam decretar medidas cautelares e também possam notificar terceiros para colaborarem na obtenção de prova, caso elas não sejam cumpridas as medidas ou não haja colaboração, em várias circunstâncias as partes continuam a ter de recorrer aos tribunais judiciais para que estes possam emitir decisões com força coerciva no sentido pretendido.

Há um sigilo excessivo na arbitragem?

Da nossa experiência, as partes valorizam o sigilo, desde logo pelas matérias, muitas vezes de interesse comercial, incluindo segredos do negócio, que estão em causa nos litígios e que assim as partes sabem que não serão reveladas publicamente. No entanto, como dissemos anteriormente, não há dúvida que oferece alguns desafios, inclusive em aspetos do próprio sistema arbitral. Para além do que já referimos, a ausência de publicação de uma parte significativa das decisões arbitrais não permite aos operadores conhecerem o sentido das decisões dos árbitros, o que pode ser relevante para avaliar as competências e experiência dos árbitros, elementos que são relevantes na escolha dos árbitros pelas partes.

A ausência de publicação de uma parte significativa das decisões arbitrais não permite aos operadores conhecerem o sentido das decisões dos árbitros, o que pode ser relevante para avaliar as competências e experiência dos árbitros, elementos que são relevantes na escolha dos árbitros pelas partes”

Existe, em Portugal, uma concentração de casos em poucos árbitros?

O corpo de árbitros tem crescido de forma estruturada e paulatina ao longo dos anos, guiando-se por elevados critérios de qualidade técnico-jurídica e ético-deontológica. A internacionalização das arbitragens que envolvem a comunidade arbitral portuguesa também permitiu a importação das melhores práticas internacionais modernas. Tudo isto levou ao alargamento das gerações mais novas de árbitros portugueses formados nesses parâmetros. Assim, há motivos para perspetivar positivamente a comunidade de árbitros portugueses. Mas ainda há um longo caminho: excluir da função de árbitro os que não têm esta formação e alargar o número de árbitros resistindo a uma certa tendência para nomear um pequeno número de árbitros, ainda que qualificados, apontando os mais qualificados mesmo que fora dos círculos habituais e evitando, por esta via, as repetições de nomeações, o que é altamente prejudicial para a credibilidade da arbitragem. Até porque à mulher de César não basta ser, é necessário parecer.